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    Perseguição a jesuítas contribuiu para demora na canonização, diz sociólogo

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    03/04/2014 07h55

    A perseguição que os jesuítas sofreram ao longo dos séculos 18 e 19, em grande parte por causa da defesa que faziam da causa indígena, é uma das causas históricas para a demora secular da canonização de José de Anchieta, opina o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador de projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP.

    A ordem "representou na América, desde o início, um compromisso de evangelização dos índios, dos mais pobres, uma visão de igreja mais militante, e isso incomodava muito os poderes da época", argumentou Borba em entrevista à Folha. Anchieta teve o "azar" de ter sua causa engavetada justamente durante o período de baixa dos jesuítas no Vaticano.

    Para o especialista, o fato de o papa Francisco ser companheiro de ordem do "apóstolo do Brasil" é mais uma "feliz coincidência" do que uma motivação política para a canonização. Para ele, Anchieta também simboliza um modelo de encontro entre culturas que incorpora boa parte da sociedade indígena ao catolicismo.

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    O papa Francisco, em vários de seus escritos, já defendeu que a Igreja Católica precisa deixar de lado suas origens culturais europeias e se adaptar melhor a culturas não ocidentais. A canonização de Anchieta é mais uma maneira de Francisco apontar esse caminho?
    Eu diria que há uma relação direta entre uma coisa e outra, mas inverteria a ordem dos fatores. Francisco, na verdade, é a atualização de uma presença, de um modo de "ser Igreja", que Anchieta representou. Aquela história dos jesuítas na América Latina colonial se personifica em alguém como Francisco.

    Por que, na opinião do sr., houve uma demora secular para a canonização do santo?
    A canonização não aconteceu antes, em primeiro lugar, porque a ordem dos jesuítas foi muito perseguida. Representou na América, desde o início, um compromisso de evangelização dos índios, dos mais pobres, uma visão de igreja mais militante, e isso incomodava muito os poderes da época, de maneira que a ordem chegou até a ser extinta [em 1773; o Vaticano acabaria restaurando a Companhia de Jesus em 1814].

    Isso é curioso porque, ao mesmo tempo, os jesuítas, por causa de seu voto especial de obediência ao papa, também poderiam ser vistos como muito próximos ao poder central do catolicismo. Como explicar esse paradoxo?
    Pode parecer uma coisa contraditória para o mundo. Mas, dentro da igreja, a obediência é sempre um fator de liberdade porque, em última análise, você obedece a Deus. Quanto maior e mais radical a sua obediência, maior a sua independência em relação ao mundo.
    No caso de Anchieta, também havia a necessidade de superar uma série de problemas que a causa da canonização vinha enfrentando, em parte por ter ficado parada ao longo desse período de perseguição à ordem.
    Vejo o fato de Anchieta ser canonizado por um papa jesuíta mais como uma feliz coincidência do que como uma ingerência do papa. Era algo que aconteceria mais ano, menos ano, então não me parece algo ativamente construído. É importante evitar essa interpretação política mais rasteira.
    Outro fator a se considerar é que a Igreja Católica, desde João Paulo 2º, tem feito um grande esforço de recuperar a imagem dos santos como modelos para o homem moderno, não como gente distante do mundo, com uma fé totalmente intimista, mas como pessoas muito abertas ao mundo e muito atuantes em seu contexto.

    Historicamente, o programa de catequizar povos indígenas é muito criticado por acabar destruindo essas culturas, na visão de muitos. Que mensagem a igreja acaba mandando quando decide canonizar Anchieta, levando essa discussão em consideração?
    Nesse contexto, uma figura como Anchieta passa duas mensagens importantes. Em primeiro lugar, a de que o projeto dos jesuítas no continente latino-americano durante o período colonial era um projeto de encontro entre culturas, com a possibilidade de um cristianismo que não destruiria nem a cultura nem as sociedades indígenas, mas ajudaria essa cultura a encontrar o mundo dos brancos e se desenvolver de um modo muito mais harmonioso e maravilhoso do que se não ocorresse tal encontro.
    É importante notar que, nas missões jesuíticas, a própria organização social e da produção praticada pelos indígenas era superior àquela dos colonos brancos do continente e mantinha a estrutura comunitária da sociedade tribal. Era uma síntese superior às duas raízes que haviam se encontrado ali, que mantinha a solidariedade da vida indígena e uma capacidade de produção superior à dos brancos. Por isso foram tão combatidos naquela época.
    Por outro lado, esse projeto significa, na prática, a negação do multiculturalismo quando ele é entendido como guetos onde as identidades culturais ficam segregadas. É um outro tipo de multiculturalismo, onde elas estão o tempo todo interagindo e encontrando o que há de melhor na outra.
    Finalmente, é algo que destrói a ideia de que a igreja esteve sempre ao lado do poder ao longo da história latino-americana. Recupera a ideia de uma igreja que, pelo contrário, sempre esteve ao lado do povo e da construção de uma sociedade que vinha das bases e evidencia que, na verdade, foram grandes poderes laicos que combateram qualquer experiência popular.

    Essa visão não tem algo de idílica quando os jesuítas, inclusive o próprio Anchieta, chegaram a defender o uso da força para sujeitar os indígenas à fé, quando necessário?
    A resposta tem dois lados diferentes. Um deles é que a contradição está presente em toda realidade humana –as coisas nunca são totalmente brancas ou totalmente pretas. E também é preciso entender que você está trabalhando dentro do contexto cultural e da mentalidade daqueles séculos.
    Naquele momento, permitir o desenvolvimento de uma sociedade significa mantê-la dentro da ordem monárquica global. Para um discurso jesuíta, a liberdade dos índios dependia de que eles estivessem inseridos na sociedade monárquica. Porém, a grande diferença em relação aos poderes seculares é que, para os jesuítas, deveria ser possível respeitar o modo de ser dos índios.

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