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    'É preciso desideologizar a política externa', diz conselheiro de Aécio

    LUCIANA COELHO
    EDITORA-ADJUNTA DE MERCADO

    21/10/2014 02h00

    Principal formulador da política externa do presidenciável Aécio Neves (PSDB), o ex-embaixador Rubens Barbosa defende uma "desideologização" da política externa, que deve levar em consideração sobretudo os interesses comerciais do Brasil.

    Nesta entrevista à Folha, Barbosa, ex-embaixador em Washington (1999-2004) e presidente do conselho de comércio exterior da Fiesp, defende relançar as bases da relação com os EUA, traçar uma estratégia para aproveitar o "boom" da classe média chinesa e reavaliar o Mercosul, que, a seu ver, deixou de ser um bloco econômico para ser político.

    Um dos cotados para ser chanceler caso Aécio Neves se eleja no próximo dia 26, Barbosa propõe "reinserir o Brasil nos fluxos de comércio globais" e resgatar o papel do Itamaraty, que ele afirma ter sido relegado a coadjuvante pelo governo Dilma Rousseff.

    Julio Bittencourt/Revista da Indústria
    Rubens Barbosa, assessor de Aécio Neves na formulação da política externa
    Rubens Barbosa, assessor de Aécio Neves na formulação da política externa

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    Folha de S.Paulo - Brasil perdeu parte do protagonismo que tinha no debate sobre acordos multilaterais, plurilaterais e bilaterais. Como voltar a ter um papel central em comércio?
    Rubens Barbosa - A estratégia de negociação comercial do Brasil nos últimos 12 anos foi totalmente equivocada. O [ex-chanceler] Celso Amorim jogou todas as fichas na negociação multilateral, na Rodada Doha [para liberalização do comércio global, via Organização Mundial do Comércio). Eu nunca acreditei nisso. A Rodada Doha não avançou e o Brasil ficou pendurado, assinou apenas três acordos comerciais sem nenhuma significação, com Israel, Egito e Palestina, em 12 anos.
    Enquanto isso, há mais de 400 acordos em processo de negociação ou negociados, com uma nova visão de mundo, novas regras. O Aécio propõe uma nova estratégia de negociação comercial. Primeiro, temos que fazer uma reavaliação da atuação na OMC.

    Como? Renovar a agenda?
    Temos que avaliar se é preciso reformar a OMC, se o Brasil tem que aderir a esses acordos plurilaterais aos quais o governo hoje se opõe. A segunda coisa é a negociação regional. O Mercosul está totalmente paralisado. Temos que reexaminar a política em relação ao grupo. Hoje o Mercosul é social e político, não econômico.
    Em 2019, se todos os acordos da Aladi [Associação Latino-Americana de Integração] forem cumpridos, teremos uma área de livre comércio na América do Sul. O Brasil vai obter zero de tarifa em todos esses países. Vamos ver como fica o Brasil e o Mercosul quando essa área de livre comércio for criada.

    O sr. crê que essa área de livre comércio entrará em vigor?
    Se os países cumprirem o que está nos acordos, sim. O Brasil ficou isolado por causa do Mercosul, e temos que ampliar esses acordos. Estava engatilhado um acordo com o Canadá, com a Coreia, mas o governo parou. Há o acordo com a União Europeia, e outros que esperamos examinar a médio e longo prazo. Temos que defender o interesse do Brasil, não o dos outros, para acabar com as restrições argentinas, para fazer com que a Venezuela e a Argentina paguem as exportações brasileiras.
    Em segundo lugar, essas negociações, sobretudo as plurilaterais, devem ser acompanhadas por medidas internas para recuperar a competitividade, por um ataque direto ao custo Brasil.
    Passam também por uma liderança do Brasil na região para dar prioridade à integração física e facilitar a logística entre os países, e passam por algo novo: uma liderança do Brasil para fazermos o que outras regiões já estão fazendo, uma integração produtiva. Isso é importante. Temos um pouco disso no acordo automotivo, mas é possível expandir.

    Em quais outras áreas isso pode acontecer?
    Estão sendo feitos estudos, mas acho que poderia ser feito na área têxtil, na siderurgia, na mineração. Há uma série de áreas onde se pode pensar em integrar empresas de outros países com brasileira para ampliar a cooperação e o comércio na região. Tanto a questão comercial como a integração precisam ser repensadas. Nos últimos 12 anos isso ficou paralisado.

    Reclama-se, na área comercial, que as agendas dos candidatos ainda são um tanto anacrônicas, fixadas nas Américas e pouco voltadas à Ásia e à África, a outras economias em expansão.
    Isso não é o que está dito nas diretrizes do Aécio. [Prevemos] a conclusão das negociações em curso com a União Europeia e a médio prazo o lançamento das bases para um acordo preferencial com os EUA; a reavaliação das prioridades estratégicas com a China por sua importância para a economia brasileira e global. Na política externa, falamos na reavaliação das prioridades estratégicas à luz do cenário internacional. Devem merecer prioridade estratégica a Ásia, em função de seu peso crescente, os EUA, e outros países desenvolvidos pelo acesso à inovação e tecnologia. O programa não está defasado.

    Como seria a relação com a China? Houve aproximação nos últimos anos, mas centrada na venda de commodities.
    O Brasil não tem nenhuma estratégia de comércio exterior, cooperação e nem política com a China, como não tem com os EUA, ou com a UE. Temos que rever tudo isso.
    É preciso identificar nichos de mercado na China, que está incluindo nesses próximos anos 400 milhões de pessoas na economia de consumo. Por maior que seja a produção interna industrial, haverá setores em que eles vão importar, é muita gente. A partir disso, são necessárias políticas públicas no Brasil para incentivar o setor exportador nessas áreas. Mas para isso é preciso estratégia. [Hoje] 92% das importações chinesas do Brasil são commodities. Precisamos ter uma estratégia, e isso passa também pelo aumento da competitividade e pelo câmbio.

    Como o sr. avalia a atuação chinesa na região, especialmente na Argentina?
    A China tem uma estratégia: adquirir energia, minérios e agricultura. Ela escolheu para isso a América Latina e a África. A China sabe o que quer. Mas aqui não definimos uma estratégia para que pudéssemos ser um parceiro efetivo. Esse é o problema. A China está executando a política dela, entrou no vácuo comercial deixado pelos EUA e, nos últimos anos, pelo Brasil. Está suprindo a Argentina naquilo que o Brasil está deixando de fornecer: calçados, têxteis, [eletrodomésticos da] linha branca. A Argentina, em vez de fazer restrições nessas áreas para fortalecer a indústria doméstica, está substituindo as importações do Brasil pelas chinesas. E o Brasil assiste a isso com a chamada paciência estratégica.

    O Itamaraty e o Mdic (Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior) negam que os setores em que a China entrou sejam os mesmos em que o Brasil atue.
    O Mdic, como o Itamaraty, sofreu um esvaziamento. E isso não é só na Argentina, é em todos os países [da região]. O Brasil perdeu competitividade, perdeu peso político. O Brasil, aqui na América do Sul, está a reboque dos acontecimentos.

    Nos últimos anos, houve a aproximação mais intensa dos vizinhos, e em tese o Brasil estaria concretizando seu papel de líder regional. Isso ocorreu de fato?
    Aconteceu no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e no primeiro mandato do Lula (2003-2006). O que defendemos agora parte do pressuposto de que o Brasil vai abandonar essa influência ideológica na política externa e na política comercial, que vamos ter uma política de Estado, e não políticas partidárias como nos últimos anos. O PT quis fazer uma união política na região contra os EUA, e criou a Unasul (União de Nações Sul-Americanas), a Celac (Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos), para excluir os EUA. Nossa nova postura é eliminar a influência ideológica e partidária na política externa e no comércio exterior. Em segundo lugar, tomar medidas internas para restabelecer a competitividade dos produtos brasileiros. Em terceiro, defender os interesses do Brasil.
    O Brasil tem que começar a renegociar do ponto de vista brasileiro, não do ponto de vista ideológico. Isso não quer dizer se voltar para a Europa. Vamos fortalecer as relações com os vizinhos, pois são 300 milhões de pessoas, um grande mercado, as empresas brasileiras já estão aí, temos que apoiá-las, fazer acordos e bitributação, de investimentos, para proteger o investimento brasileiro que cresce aí fora.

    É possível desideologizar totalmente as relações regionais? Sempre haverá um governo com o qual se tem mais afinidade.
    O Brasil atual tem afinidade ideológica com a Venezuela, e isso está prejudicando os interesses brasileiros. As diretrizes do programa de governo preveem que o Brasil vai continuar apoiando a Argentina e a Venezuela no esforço para estabilidade econômica e para o crescimento. Mas o Brasil não pode ignorar problemas relacionados com a democracia e os direitos humanos na região.
    Não podemos ignorar as restrições protecionistas que prejudicam as empresas brasileiras, o Brasil precisa ser vocal nisso. Não precisa brigar com ninguém. Ainda não conseguimos lidar, à medida que o Brasil se projeta, com a contradição entre os valores que defendemos e nossos interesses concretos. Temos que ampliar nossas relações com os países vizinhos porque é importante para o Brasil, não porque ideologicamente é importante.

    O sr. tem citado os governos Lula e Dilma como se fosse um contínuo em política externa. Mas o pais ganhou relevância sob Lula. Isso não é visto no governo atual.
    Essa questão tem a ver com a marginalização do Itamaraty, que perdeu o papel central na formulação e na execução da política externa e passou a ser um coadjuvante. Sobretudo nas relacionadas à América do Sul, quando o processo decisório passava pela assessoria de assuntos internacionais da presidente. A revalorização do Itamaraty é prioridade no programa do Aécio.

    Como isso vai ser feito?
    O Itamaraty neste ano está com 0,16% do Orçamento federal. Houve aumento de custos porque o governo abriu dezenas de embaixadas, mas há embaixadores que estão lá fora sem possibilidade de atuar, métodos de trabalho ultrapassados, desmotivação dos quadros, sobretudo por causa dessa perda da centralidade no processo decisório. Isso tudo tem que ser revisto.

    Falta diplomacia pública?
    Falta. Essa projeção externa do Brasil se explica pelo crescimento da economia, pela diplomacia presidencial do Fernando Henrique e do Lula e por uma ação mais ativa do Brasil nos organismos internacionais. Perdeu-se tudo isso. Outra coisa importantíssima para a projeção e que não dependeu do Brasil foi a inclusão nos Brics [grupo formado por Brasil, Rússia, China e Índia a partir de uma sigla criada por um banco de investimentos]. Defendemos definir nossos interesses em relação aos Brics.

    A respeito dos EUA, o sr. diz que temos que retomar as relações de fato. Houve uma explosão de iniciativas nos último anos, mas pouco resultado concreto. O sr. vê interesse real dos EUA nessa retomada?
    Os EUA têm tantos problemas que a preocupação deles não passa pela América Latina. Têm um comércio razoável, está tudo bem para eles. Um país, para chamar atenção dos EUA, ou tem que ser um Estado pária, como a Síria, o Iraque, ou tem que interessar a eles. Essa foi a década perdida nas relações entre os dois países, em que os dois lados perderam oportunidades.
    Quando virarmos a página, o Brasil tem que identificar com os EUA pontos de interesse em comum. Isso foi feito, no comunicado do [presidente dos EUA, Barack] Obama na visita ao Brasil em 2011. O governo, por questões ideológicas, não levou adiante essas decisões tomadas por Dilma e Obama. Mas os exemplos estão lá. Os instrumentos para um salto qualitativo na relação estão aí. O que precisa é de vontade política.

    Dá para atrair interesse americano sem estar geograficamente perto de um Estado pária? Os grandes parceiros dos EUA são, historicamente, países que estão perto de áreas politicamente sensíveis.
    No relançamento das relações com os americanos, o Brasil tem que ser visto por eles como um pais diferente, em outro patamar, equiparado à Turquia, à India, à Coréia. Porque isso tem consequências práticas, de interesse brasileiro, como ter acesso a tecnologia de ponta, a tecnologia de uso civil e militar. O Brasil interessa a eles, porque os EUA têm hoje uma política ativa de comércio exterior que está dando resultado. Os EUA gostariam de ter uma relação mais intensa na área de defesa, por exemplo. Isso está no comunicado de Dilma e Obama, não é invenção do PSDB.

    Isso foi escrito à luz da concorrência dos caças no Brasil, em que a Boeing tinha interesse.
    Claro, mas todo mundo defende seus interesses.

    Como pode ser aumentado o "soft power" brasileiro?
    O soft power brasileiro tem três pilares. O Brasil tem que fortalecer a ABC, a Agência Brasileira de Cooperação. O segundo é a política cultural, e aí vem a diplomacia pública. Pode-se pensar em criar fora um "instituto Brasil", algo assim, como a China criou o Instituto Confúcio. E o terceiro pilar é a capacidade brasileira de formar consenso nos organismos multilaterais. O Brasil tem essa capacidade, e deverá ampliar e dinamizar sua ação em temas globais. Outra coisa que pensamos é que a ABC hoje é reativa, ela recebe os pedidos e responde, na maioria das vezes da América Latina e da África. A ABC teria que ter uma política ativa, também, de procurar os programas nas áreas que interessam a nós.

    Não há muita coisa sobre África no programa.
    Há detalhes sobre a cooperação e assistência técnica, e [defendemos] a definição de uma estratégia de promoção comercial. Hoje há um comércio decrescente com a África.
    Outra coisa importante nos governos Lula e Dilma é o comércio Sul-Sul. Neste programa [de Aécio Neves] não se fala em Sul-Sul, mas em países em desenvolvimento, para desideologizar essa ação comercial com os países em desenvolvimento.
    Se você olhar as estatísticas, em duas áreas prioritárias para os governos Lula e Dilma na política Sul-Sul, a África e o Oriente Médio, verá que a porcentagem do comércio exterior brasileiro com a África e o Oriente Médio era 3,5%, 4%, e hoje é de 4,5%. Continua marginal. Criaram embaixadas, deram empréstimos de tudo quanto é jeito a esses países, o Brasil se desgastou nessa relações, criaram o fórum América Latina-Oriente Médio, e, do ponto de vista que interessa ao Brasil, que é o do comércio, a coisa ficou praticamente igual.
    Por isso, as relações com os países em desenvolvimento devem ser ampliadas e diversificadas, mas sem prejuízo às relações com os países desenvolvidos.

    Como devem ser nossas relações com Cuba?
    O Brasil vai continuar a fazer comércio bilateral. Vai manter a boa relação com Cuba, procurar diversificar, ampliar, ajudar Cuba com transparência nos programas que puder ajudar, e vai continuar a apoiar o fim do embargo econômico comercial americano contra Cuba. As empresas brasileiras podem se beneficiar da diversificação. Apoiar com transparência, porque o que estão fazendo agora é apoiar sem transparência. Apoiar com transparência projetos que sejam de interesse conjunto.

    Devemos voltar a brigar por uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU?
    O próximo ano terá o 70º aniversario da ONU, e esse assunto vai voltar a ser discutido. O Brasil não deve fazer uma campanha como foi feito com o Celso Amorim, mas deve manifestar seu interesse em ser incluído. Quando os países-membros decidirem ampliar o conselho, o Brasil é um candidato natural.

    Algo que o sr. gostaria de acrescentar?
    Sim, sobre o Mercosul: o Brasil, tanto na integração regional, como no Mercosul, tem que tomar a liderança. O Brasil está a reboque de tudo na região. O Brasil tem que propor, e deixar na mesa todas as hipóteses em relação ao Mercosul. Se não sair o acordo com a União Europeia por causa da Argentina, por exemplo, há como aceitar?

    E há como respeitar o bloco e negociar grandes acordos ao mesmo tempo?
    Temos que explorar todas as possibilidades; há geometrias diferentes, duas velocidades. O Brasil tem que liderar uma discussão sobre o futuro do Mercosul sem excluir nenhuma hipótese.

    Sem excluir a hipótese de dissolver o bloco?
    O Mercosul foi criado por um tratado. Temos de conversar com os nossos parceiros para tentar retomar o dinamismo comercial do grupo. A dissolução do Mercosul não esta na mesa, mas há outras formas de dar mais liberdade de negociação ao Brasil.

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