• Poder

    Monday, 06-May-2024 09:17:12 -03

    Justiça barra megaobra em local sagrado para índios entre PA e MT

    ESTÊVÃO BERTONI
    DE SÃO PAULO

    19/01/2015 02h00

    Na terra kaiabi, há oito aldeias. Mas existem outras que só os índios conhecem. São as "aldeias dos espíritos".

    Habitadas por personagens mitológicos há ao menos dois séculos, elas se situam em locais que estão prestes a desaparecer devido à construção de uma usina no rio Teles Pires, na divisa entre o Pará e o Mato Grosso.

    Orçada em mais de R$ 2 bilhões, a obra que ameaça os índios é a hidrelétrica de São Manoel, que integra o PAC 2 (Programa de Aceleração do Crescimento) e está hoje no centro de uma briga judicial.

    Editoria de Arte/Folhapress

    No fim de dezembro, a pedido do Ministério Público Federal, a Justiça mandou suspendê-la devido ao descumprimento de ações que devem diminuir seu impacto.

    Foi a sexta liminar favorável à paralisação da construção desde 2011.

    As outras cinco foram derrubadas pelo governo com base no argumento de que o atraso numa usina apta a fornecer energia para 2,5 milhões de pessoas afeta a economia.

    Agora, o governo alega que nem todas as ações previstas na licença devem ser cumpridas previamente, e a suspensão pode ser revertida a qualquer momento.

    Há uma sétima ação proposta pela Promotoria, ainda não julgada. Para o órgão, haverá danos aos índios tão logo 4.000 homens se alojem na região para iniciar a obra.

    Planejada para ser erguida a 700 metros de terras indígenas onde vivem 900 kaiabi e, mais acima, 8.000 munduruku, a usina vai encobrir com água lugares que, embora fora das áreas demarcadas, são intocáveis para os índios.

    Vão desaparecer, por exemplo, o morro do Macaco e a cachoeira das Sete Quedas, moradas de espíritos que se comunicam entre si, como conta o antropólogo Frederico César Barbosa de Oliveira.

    "Essa rede de comunicação espiritual envolvendo morros e cachoeiras é um aspecto fundamental das cosmografias [descrições do mundo] indígenas e ainda funciona na afirmação da territorialidade atual dos índios", diz ele, cuja tese de doutorado é sobre os kaiabi.

    Em 2011, Frederico foi contratado pela EPE (Empresa de Pesquisa Energética), ligada ao Ministério de Minas e Energia, para fazer um complemento ao estudo do impacto da usina na vida dos índios.

    No trabalho, o antropólogo escreveu que "mexer com um lugar sagrado, especialmente aqueles relacionados com a água, já é motivo suficiente para tomar como inviável qualquer tipo de empreendimento". Criou, assim, uma saia justa para o governo.

    Em relatório entregue à Funai, a EPE rebateu dizendo que suas "opiniões extrapolam limites da competência técnica e profissional" e deveriam ser consideradas "percepções de caráter pessoal".

    Embora crítico à usina, ao final do trabalho de campo Frederico ficou refém dos índios, que exigiram a presença do presidente da Funai, durante sete dias.

    "Ameaçaram fazer uma gaiola no centro da aldeia, pôr a gente lá e colocar fogo", lembra ele, que foi resgatado de helicóptero com outros funcionários do governo.

    Para ele, a rede espiritual faz parte do patrimônio imaterial dos índios, que "é muito difícil de ser mensurado por técnicos do governo" e acaba sendo desconsiderada.

    Frederico Oliveira/Arquivo Pessoal
    Índios na aldeia Kururuzinho, na terra indígena Kaiabi, na divisa entre o Mato Grosso e o Pará
    Índios na aldeia Kururuzinho, na terra indígena Kaiabi, na divisa entre o Mato Grosso e o Pará

    IMPACTOS DIRETOS

    O relatório de impacto ambiental reconhece, porém, que as obras podem causar problemas como o aumento da prostituição e de doenças sexualmente transmissíveis.

    Para a Promotoria, há risco de genocídio na região e não houve consulta aos indígenas. "Ali naquela região haverá um complexo de usinas, e todas elas impactam terras indígenas", diz o procurador Felício Pontes Jr.

    Para o governo, a São Manoel não interfere diretamente nas terras indígenas porque estará fora delas. A União diz ainda que os índios tiveram "oportunidade de conhecer o projeto, manifestar-se e influenciar no processo".

    Sobre o aumento da prostituição na região, propõe medidas de conscientização e prevenção de doenças.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024