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    Lava Jato

    Filho de Cerveró que gravou Delcídio é 'quase hippie' e já teve patrocínio da Petrobras

    FABIO VICTOR
    ENVIADO ESPECIAL AO RIO E A PETRÓPOLIS

    06/12/2015 02h00

    Mauro Kury/Divulgação
    o ator Bernardo Cervero na Peca O Principezinho do Deserto Foto: Mauro Kury/Divulgacao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    O ator Bernardo Cerveró na peça 'O Principezinho do Deserto '

    Quando Bernardo Cerveró decidiu fazer o que fez, seu pai parecia estar enlouquecendo na cadeia.

    Nestor Cerveró, o ex-diretor da área internacional da Petrobras preso na Operação Lava Jato, chegou a defecar na pia da cela no Complexo Medico Penal, em Pinhais, Grande Curitiba, onde esteve até o último dia 25.

    Naquele dia, horas depois de o líder do governo no Senado, Delcídio do Amaral (PT-MS), e o banqueiro André Esteves serem presos graças a uma cilada de Cerveró filho, Cerveró pai voltou à carceragem da PF na capital –seu primeiro pouso ao ser detido, em janeiro–, por alegados motivos de segurança.

    Ator e produtor de teatro do qual pouco se ouvira falar fora do circuito independente carioca, Bernardo, 34, ganhou projeção nacional pela história de cinema que protagonizou e pelo efeito que seu gesto provocou e poderá provocar na política do país.

    O ator gravou às escondidas uma conversa que teve num quarto de hotel em Brasília com Delcídio, um assessor e o até então advogado do seu pai, Edson Ribeiro, na qual se trama para barrar a delação premiada de Nestor Cerveró e ajudar o ex-diretor a fugir do país quando conseguisse um habeas corpus.

    Para ocultar atos de corrupção que comprometeriam a ele e a Delcídio se relatados por Nestor, Esteves, sustenta a investigação, pagaria a família Cerveró para que o patriarca abrisse mão da delação.

    Segundo o Ministério Público Federal, Bernardo registrou a conversa com um celular e um gravador. Teria levado mais dois aparelhos, que não foram acionados. Advogados o orientaram antes da ação.

    Políticos que acompanham o caso desconfiam que o MPF possa ter auxiliado na gravação. A instituição informa que foi alertada do plano anteriormente, mas nega ter ajudado a gravar a conversa.

    Fato é que a empreitada assegurou enfim a delação do ex-diretor, cuja homologação Bernardo e seus advogados esperam com ansiedade –permitirá a Nestor, já condenado a 12 anos de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro, deixar a cadeia no ano que vem, passando a usar tornozeleira eletrônica.

    CALADO E SUMIDO

    A advogada Alessi Brandão informou que Bernardo não vai dar entrevistas por enquanto. Tampouco se sabe onde está o ator. A amigos, avisou que precisava sumir e pediu que falassem o mínimo possível sobre ele.

    Entre os que se dispõem a falar –a maioria sem se identificar–, há a certeza de que seu gesto foi o de um filho aflito para salvar o pai da ruína.

    Embora para alguns investigadores possa ter algo de teatro, a degradação física e psíquica de Nestor Cerveró na cadeia impressionou quem viu de perto. Por vezes dizia frases desconexas, passava dias sem tomar banho.

    A mulher de Nestor, Patrícia, que ampara o marido desde a prisão, em janeiro, foi aos poucos intervindo menos. Ainda o visita e sabe dos movimentos do caso, mas gradativamente Bernardo se tornou o integrante da família a liderar a defesa de Nestor. A outra filha do casal, Raquel, tem problemas psiquiátricos.

    "Acho que ele assumiu a tarefa de cuidar do pai daqui de fora. Aí ele foi entender o que era o trabalho do pai, o que é comprar uma refinaria, o que é navio-sonda. Na gravação com o senador, ele parece ter noção do que é aquela realidade", diz o tradutor João Polessa Dantas, amigo de Bernardo durante a infância e a adolescência.

    Filho dos atores Zezé Polessa e Daniel Dantas, João era colega de Bernardo no colégio São Vicente de Paulo, referência entre famílias liberais cariocas –iam juntos de bicicleta para a aula–, e lembra do amigo com carinho e respeito.
    "Sempre foi um cara muito inteligente, engraçado e correto, nunca foi antiético. Como amigo, assino embaixo que ele é um cara maneiro."

    Confrontado com o rótulo de herói nacional que espoucou das redes sociais logo após o episódio, Dantas relativiza: "Herói nacional também não. Ele não se arriscou para melhorar a qualidade da nossa política, mas para melhorar a situação do pai".
    Dantas conta ter convivido com Bernardo dos anos 90 até 2006 e que, no período, jamais viu sinais de riqueza ou ostentação dele ou da família.

    Até então, os Cerveró moravam num apartamento de três quartos e 96 m² na rua Prudente de Morais, a uma quadra da praia, em Ipanema.

    A investigação da Lava Jato revelou a existência de imóveis mais valiosos de Cerveró, entre os quais uma cobertura duplex também em Ipanema, avaliada em R$ 7,5 milhões e já confiscada pela Justiça, após a denúncia de que o ex-diretor da Petrobras usou uma offshore no Uruguai para esconder a compra do apartamento.

    Quando saiu da casa dos pais, Bernardo morou num quarto e sala de 56 m² no Flamengo. Casado com a bailarina e professora de dança Luciana Ponso, tem com ela uma filha que acaba de completar nove anos, como conta a Delcídio na gravação -o senador se impressiona com a idade e diz tê-la visto "pequenininha".

    BÚSSOLA

    Afrouxando o interlocutor afável com diálogos assim, fazendo-se de tolo até ele soltar o ouro, o ator que cumpriu naquele quarto de hotel o papel mais arriscado de sua carreira é ao mesmo tempo cerebral e simples, descreve quem o conhece bem.

    Bernardo estudou agronomia na UFRRJ (Universidade Federal Rural do RJ), mas largou o curso. O interesse por teatro, nascido nas aulas no São Vicente, o levou a cursar a CAL, Casa das Artes de Laranjeiras, para onde acorre boa parte da juventude bem nascida carioca que busca os palcos.

    No colégio e na CAL, o professor foi o mesmo, Almir Telles, 73, figura algo mítica nas duas instituições. Diretor apaixonado pelo teatro, cearense radicado há mais de 50 anos no Rio, Telles tornou-se uma espécie de bússola na formação de Bernardo.

    Na CAL, fez do jovem pupilo seu assistente nas aulas. No grupo Sarça de Horeb, fundado por Telles e que durou de 1989 a 2011, Bernardo teve sua iniciação profissional. Formou-se também em dança, pela faculdade Angel Vianna, onde hoje sua mulher é professora.

    Pelo Sarça, Bernardo interpretou o Pequeno Príncipe (em versão batizada de "O Principezinho do Deserto" para evitar problemas com direitos autorais com o espólio de Saint-Exupéry, conta Telles), fez par romântico com Patrícia França em "A Beata Maria do Egito", de Rachel de Queiroz, e integrou o elenco de "Brasil Nunca Mais - De Getúlio aos Generais", um libelo antiditaduras escrito por Telles.

    Mas talvez seu papel mais lembrado pela turma do Sarça tenha sido em "Torturas de Um Coração, ou Em Boca Fechada Não Entra Mosquito", de Ariano Suassuna –concebida para teatro de bonecos.

    Com o rosto pintado de preto, Bernardo fez o negro Benedito, que, pelo amor de Marieta, desmoraliza um cabo de polícia e um fazendeiro.

    O artista também deve ter gostado do papel: um close no rosto de seu Benedito ilustra o perfil de Bernardo no Facebook, onde ele, depois da notoriedade, trocou o nome real para um pseudônimo.

    "Bernardo é um ator corajoso, interessante e atrevido como comediante", observa Telles.

    Pela filosofia do grupo, os próprios atores eram também produtores das peças.

    Segundo Telles, o fato de Bernardo ser filho de um diretor da Petrobras não ajudou "quase nada" ao captar recursos.

    Uma busca no SalicNet, o sistema que reúne dados sobre projetos da Lei Roaunet, revela que um projeto do grupo (O Teatro vai à Escola) teve patrocínio de R$ 150 mil da BR Distribuidora em 2008, quando Cerveró pai era diretor da empresa. Um CD produzido pelo Sarça ("Camerata Brasilis") recebeu, em 2011, R$ 153 mil da Petrobras.

    Do R$ 1,17 milhão captado pelo grupo via Lei Roaunet, o maior patrocínio veio da petroquímica Rhodia, R$ 574,5 mil em 2005 para a peça "A Beata Maria do Egito".

    BICHO-GRILO

    Querido pelos amigos, Bernardo é descrito por eles como alguém que gosta de natureza e tem hábitos quase de um hippie –acampava no Sana, região na serra de Macaé (RJ) frequentada por bichos-grilos.

    Costuma ir a Itaipava, distrito de Petrópolis, onde a família tem uma casa num condomínio. "Ele é tranquilo, é como se fosse pobre. Se precisa cortar grama, ele corta, só anda descalço, é muito gente boa", relata Júlio Inácio Pereira, irmão da dona de uma casa vizinha ao condomínio.

    A 15 km da casa, numa região isolada e de difícil acesso, já no município de Teresópolis, os Cerveró têm ainda uma fazenda, a Serra da Estrela.

    No pedido de prisão de Delcídio e Esteves, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, escreve que, em seu depoimento ao MPF, "Bernardo Cerveró mostra-se temeroso das pessoas com quem vem mantendo tratativas causar-lhe algum mal ou a sua família, haja vista a tenacidade de sua determinação de evitar ou manipular a colaboração premiada de Nestor Cerveró".

    Amigos apostavam que, assustado, Bernardo se refugiaria no mato de que tanto gosta. Na última terça (1º), ele era aguardado pelos caseiros de sua fazenda, Hercílio e Neide.

    Eles contam que hoje, sob supervisão de Bernardo, plantam banana, eucalipto, café, cana, mexerica, palmito e uva.

    No passado, o ator tentou implantar na fazenda o sistema de agrofloresta, que intercala no mesmo terreno vegetação nativa e culturas variadas, mas não deu certo.

    Segundo Hercílio e Neide, o local não tem uma residência para os donos, e quando Bernardo, o Cerveró mais assíduo ali, aparece, dorme na casa dos caseiros.

    Nestor só apareceu duas vezes. "Depois deu aquele problema", balbucia Hercílio.

    E Bernardo? "É um homem muito bom, muito simples e educado. É um homem mais de ouvir do que de falar."

    Colaboraram BELA MEGALE e GRACILIANO ROCHA, de São Paulo

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