Se a faxineira Rosinete Cavalcante, 43, fosse parente de algum advogado de Manaus, não precisaria sair de casa às 4h da manhã e atravessar a cidade para chegar, às 5h, ao Fórum Eleitoral para agendar o recadastramento biométrico exigido pela Justiça Eleitoral aos 1,2 milhão de eleitores da capital amazonense.

É que, para garantir o conforto e a comodidade dos advogados e seus familiares, o Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (TRE-AM) criou uma espécie de "atendimento vip" para os 11 mil profissionais registrados na ordem, em uma sala da própria OAB.

Os advogados não precisarão enfrentar os transtornos da grande maioria da população, que precisa entrar em duas filas: uma para o agendamento, e outra para o recadastramento de fato, quando as digitais são colhidas.

Além disso, não precisam ir ao Fórum Eleitoral, mas à sede da OAB, onde são atendidos sem agendamento prévio.

O TRE informou que o posto da sede da OAB atende com exclusividade "os advogados e seus ascendentes e descendentes" e que depois será aberto ao público em geral. Disse ainda que os funcionários da OAB estão sendo treinados para realizar a biometria da população enquanto atendem os associados da ordem.

O aposentado Alexandrino Chagas, pai de uma advogada, levou o filho caçula para fazer o recadastramento após tentativas frustradas para agendamento. O jovem conseguiu ser atendido em pouco mais de 20 minutos.

A secretária-geral da OAB-AM, Ida Márcia Benayon, diz apenas que depois que todos os advogados fizerem o recadastramento "pode haver a possibilidade que se estenda para a população".

Enquanto esse dia não chega, a faxineira Rosinete se preocupa em perder o dia de trabalho e ter o salário descontado no fim do mês. Ela é a única pessoa empregada na casa onde vive com mais nove pessoas.

Mesmo chegando às 5h no Fórum Eleitoral, ela pegou a senha de número 337, de um total de 350, distribuídas somente às quintas-feiras.

"Essa é a segunda vez que venho aqui. Tenho gastado dinheiro com passagem de ônibus, e faz falta em casa. Para ir e voltar são R$ 6, e depois de mim ainda vem o resto da família", diz.

TRANSTORNO

A reportagem esteve no Fórum Eleitoral nesta quinta (4), onde encontrou uma fila quilométrica de eleitores que tentavam fazer o agendamento e ouviu muitas reclamações e desabafos.

"Vai ter muita gente sem votar esse ano nesses vagabundos [políticos]", disse um homem que havia tentado, sem sucesso, o agendamento pela internet. Ele não quis se identificar.

Apesar de existir essa opção, os relatos são sempre os mesmos: o sistema nunca funciona, ou as vagas já estavam preenchidas.

Foi o que aconteceu com a funcionária pública Júlia Ferreira, 38, que decidiu ir ao fórum após tentativas frustradas na internet. Chegou às 8h e se deparou com mais de 350 pessoas à sua frente. "No trabalho estão cobrando o meu recadastramento, mas nunca consigo fazer o agendamento. Inadmissível em plena era tecnológica passarmos por isso", afirma.

Com a senha 124, o comerciário Manoel Pantoja, 51, chegou às 4h e encontrou eleitores que estavam ali desde as 3h. "Enquanto uns estão com a vaca gorda, nós ficamos chupando osso seco", lamenta.

Pantoja disse que não pretendia fazer o recadastramento, mas mudou de ideia ao saber das sanções previstas: exclusão de programas sociais, não contratação em caso de aprovação em concurso público e impossibilidade de solicitar benefícios do INSS.

O contador Jerônimo Costa, 48, tenta desde novembro o agendamento pelo site do TRE, mas todas as vezes é avisado de que não há mais vagas disponíveis.

O prazo expira em pouco mais de duas semanas, e mais de 200 mil pessoas ainda precisam fazer a atualização do título, de acordo com o TRE. O prazo final para a regularização é 26 de fevereiro.

O processo permitirá que o eleitor seja identificado pelas digitais no dia da votação, o que ajuda a reduzir a possibilidade de fraudes nas eleições.

OUTRO LADO

O TRE afirma, em nota, que desde 2014 realiza parcerias com instituições do Amazonas interessadas em contar com postos de recadastramento, como o Tribunal de Contas do Estado. Segundo o tribunal, as parcerias ajudam a desafogar os locais destinados aos demais eleitores.

"Levamos em conta, ao atender as solicitações, o número de eleitores que podem ser atingidos com aquele convênio. No caso da OAB, são mais de 11 mil advogados, além de seus familiares", diz.

Os funcionários e alguns equipamentos usados nas parcerias são fornecidos pela entidade que solicita o serviço. De acordo com a OAB, todos os funcionários que atuam no recadastramento dos advogados são da casa.