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    Análise

    Crônica ainda atrai leitores, apesar de política dominar noticiário

    MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
    EDITOR DA "ILUSTRÍSSIMA" E DA "SÃO PAULO"

    26/02/2016 02h00

    Afinal, o que define a crônica como gênero? Um híbrido de literatura e jornalismo, ela é certamente uma narrativa mais leve e autoral, que parece ter como função poupar ou recompensar o leitor da aridez do noticiário e das análises especializadas.

    Em palavras mais felizes, o crítico Afrânio Coutinho (1911-2000) disse que a crônica, como matéria cotidiana nos veículos, representa um "recreio do espírito" –nos oferecendo, quando bem-sucedida, uma "amável e brilhante cintilação da inteligência".

    Na conversa de Fernanda Torres, Luis Fernando Verissimo e Ruy Castro sobre o tema, com mediação do jornalista e editor Alcino Leite Neto, essas características –ao lado de outras– foram citadas. Para Fernanda, a crônica é "o paraíso do sujeito"; para Ruy, ela difere da coluna de opinião e pressupõe uma veleidade literária do autor; já na avaliação de Verissimo, a relativa indefinição do gênero é um convite à liberdade. "A melhor definição de crônica que conheço", diz ele, é "tudo aquilo que eu disser que é crônica".

    Na opinião do cronista de "O Globo" e "O Estado de S. Paulo", foi Antonio Maria (1921-1964) quem melhor aproveitou a liberdade do gênero no jornalismo brasileiro. Homem de rádio, TV, música e esporte, durante anos escreveu diariamente para jornais do Rio, aventurando-se pela ficção, pela memória nostálgica, pelo humor e mesmo pelo "texto sério".

    Antonio Maria é menos uma raridade do que um exemplo, entre muitos, do êxito da crônica entre nós. A imprensa brasileira tem longa e boa tradição nesse ramo, notadamente depois do século 19, quando a crônica começa a ganhar suas feições modernas a partir de um processo de mutação do folhetim e dos textos voltados para as "variedades".

    Grandes nomes da literatura brasileira se dedicaram ao gênero, alimentando e aperfeiçoando suas características -de Machado de Assis, José de Alencar ou João do Rio ao mestre Rubem Braga, passando, entre outros, por Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues, Carlos Heitor Cony e Otto Lara Resende.

    Encontro Folha

    HERANÇA DE OTTO

    Ruy Castro, que hoje ocupa a mesma coluna Rio outrora a cargo de Otto, à pág. 2 da Folha, lembra o papel de seu antecessor na transformação da ideia original daquele espaço, concebido para abrigar comentários sobre a realidade política carioca.

    Foi nos dois anos que colaborou como colunista, 1991 e 1992, que Otto se consagrou como cronista —cuja qualidade pode ser confirmada em "Bom Dia para Nascer" (Companhia das Letras), que reúne 266 textos do autor.

    Ruy também declara-se fã de seu colega de coluna Carlos Heitor Cony -de quem guarda uma coleção de recortes de textos do início da década de 1960. Com Otto, Cony e Ruy, a coluna Rio ganhou feições diferentes das de São Paulo e Brasília, de certa forma mais politizadas.

    "Estamos nos tornando monotemáticos", lamenta Verissimo, referindo-se à atual onda política que domina o noticiário, com seus escândalos de corrupção e debates acirrados entre adversários ideológicos.

    "A política hoje está em tudo", concorda Fernanda, que se sente pressionada, como outros colunistas, a entrar no assunto. Será que não seria mais adequado falar diretamente de política do que tentar explorar temas mais subjetivos com inclinação literária? É uma dúvida que parece incomodar os cronistas.

    Ruy lembra, em defesa da crônica, que o que lhe confere permanência é precisamente esse seu alheamento da urgência política. Ao folhearmos jornais antigos -argumenta ele- já não nos interessamos pelas notícias, pois são velhas e datadas.

    Já as crônicas da época, sem a contaminação do factual, acabam por se mostrar mais duradouras, e podem ser lidas, com interesse, décadas depois.

    "É curioso que sendo 'soft news' ou 'no news', a crônica tenha mais sobrevivência que o 'hard news'", diz.

    CONCESSÃO AOS FATOS

    Na prática, porém, de uma maneira ou de outra, nossos cronistas não conseguem resistir e acabam cedendo ao alarido dos temas hegemônicos. Fernanda, que se considera mais cronista na "Veja Rio" do que em suas colunas na "Ilustrada", diz acreditar que a realidade política está "mais impressionante" do que tudo e acaba se impondo ao colunista.

    Verissimo, um escritor com conhecidas tendências de esquerda, também deixa-se muitas vezes levar pelo calor das manchetes —embora goste da "bobagem" que seduz e agrada o leitor.

    Ruy Castro diz que se obriga, duas vezes por semana, a deixar de lado "a conversa fiada com o leitor" para tentar fazer uma ponte com o noticiário. Ele diz que se sente "constrangido de passar a semana inteira falando só de abobrinha".

    Fernanda lembra-se de um texto de Millôr Fernandes para demonstrar que o bom cronista consegue falar de questões consideradas sérias por caminhos diferentes. Numa célebre crônica, ele relata que via sempre Rubem Braga pela janela de seu apartamento até que um dia um prédio novo, entre tantos que se erguiam, tapou-lhe a visão.

    A partir de um ponto de vista poético e pessoal –diz Fernanda– Millôr conseguia, no final das contas, tratar de um assunto do mundo político e econômico —"a especulação imobiliária no Rio".

    Fernanda faz questão de citar Antonio Prata, colunista da Folha, entre seus cronistas prediletos —ele que talvez seja o principal nome do gênero na nova geração. Sinal de que a crônica se renova e volta à moda entre escritores emergentes. Imprensa e leitores parecem gostar do fenômeno —ainda que alguns críticos possam levantar objeções sobre sua força literária.

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