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    ANÁLISE

    Em meio a escândalos políticos, não sobra espaço para debater o país

    PATRÍCIA CAMPOS MELLO
    DE SÃO PAULO

    26/02/2016 02h00

    Os colunistas da Folha André Singer, professor da USP e ex-porta-voz da Presidência da República no governo Lula, e Mario Sergio Conti, jornalista, foram convidados para debater com o também colunista Reinaldo Azevedo no Encontro Folha de Jornalismo. Eles declinaram. O professor da USP Vladimir Safatle, colunista da Folha, disse que não poderia participar porque estava viajando.

    Não é fácil debater com Reinaldo Azevedo, ponta de lança da nova direita brasileira. Ele é agressivo em seus comentários e não deixa o interlocutor falar. Em certas ocasiões, reservou palavras pouco amistosas para Singer ("desonestidade intelectual") e Safatle ("intelectual que defende o aborto e chama feto de parasita").

    Qualquer colunista que aceitasse ser o contraponto esquerdista do exuberante Azevedo sabia que teria uma tarefa inglória.

    Além disso, hoje em dia, quem se considera de esquerda já sai de casa na defensiva e passa o dia inteiro se explicando. Ainda que não seja petista.

    O ex-militante trotskista e ex-colunista da Folha Ricardo Melo, diretor da EBC (Empresa Brasil de Comunicação), resolveu encarar o desafio –relevando o fato de ter sido chamado de "gafanhoto [discípulo] do Paulo Henrique Amorim" e "ignorante" no blog de Reinaldo Azevedo na revista "Veja".

    Os tempos e os embates ideológicos mudaram.

    Em 1968, o escritor americano de esquerda Gore Vidal (1925-2012) duelou com seu nêmesis ideológico William F. Buckley Jr (1925-2008), ícone do conservadorismo norte-americano, em uma série de debates antológicos durante as primárias dos EUA.

    "Deixei o corpo ensanguentado de William F. Buckley Jr jazendo no meio do salão da convenção em Chicago", diz Vidal, em cena do documentário "Best of Enemies" (2015), já disponível na Netflix brasileira.

    No Brasil de 2016, a discussão entre Melo, Azevedo e o moderado Josias de Souza, blogueiro do UOL e ex-colunista da Folha, não teve sangue nem xingamentos. Mas tampouco teve profundidade.

    ESPELHO

    Na mesa "Sai, Dilma/Fica, Dilma - O Que Eu Acho do Jornalismo de Opinião", o que mais se ouviu no auditório do MIS foram considerações sobre os inúmeros escândalos de corrupção atualmente investigados no país e o viés da imprensa.

    Enquanto Buckley e Vidal discutiam as premissas do Estado de bem-estar social, direitos civis, concentração de renda e a necessidade de os Estados Unidos saírem da guerra do Vietnã, em meio a ácidas ofensas pessoais, no Brasil que encolhe 4% ao ano os tópicos eram a antena que a Oi instalou no "sítio frequentado por Lula em Atibaia" e a Brasif pagando salário para Mirian Dutra, ex-amante de Fernando Henrique Cardoso.

    O problema não está nos debatedores que participaram. A conversa foi um espelho fiel da realidade.

    A quantidade de escândalos da atualidade é tão avassaladora que não sobra tempo para discutir o país.

    Os três jornalistas concordaram que a função última da imprensa é questionar o governo.

    Mas, para Azevedo, "existe um alinhamento da imprensa mais à esquerda", e a mídia "é mais generosa, mais tolerante com o PT". Já para Melo, a imprensa pode ser acusada de tudo, "menos de ser de esquerda".

    Mais uma vez, há um espelho da realidade: a Folha, por exemplo, é tachada de petista pelos leitores tucanos, e de integrante do PIG (Partido da Imprensa Golpista) pelos petistas. Ou seja, ao menos desagrada democraticamente.

    Para Josias de Souza, essa não é a questão. "Nós queremos uma imprensa que seja veraz, não de esquerda ou de direita, queremos saber o que é fato e o que não é", afirmou.

    No final, o mediador Bernardo Mello Franco, colunista da Folha, conseguiu levar de volta a discussão para o tema principal da mesa: haverá ou não impeachment da presidente Dilma Rousseff?

    Josias e Azevedo afirmaram que o impeachment se esvaziou do ponto de vista político, mas que há, sim, indícios fortes de crime de responsabilidade.

    "Todo mundo sabia que a política brasileira estava apodrecida, nós chegamos a um estágio em que a podridão apareceu, e é preciso que isso tenha uma consequência", disse Josias. "Mas é preciso ver se o Tribunal Superior Eleitoral [TSE] terá coragem cívica."

    O TSE tem o poder de cassar o mandato de Dilma e do vice-presidente, Michel Temer, caso se comprove que o dinheiro da corrupção da Petrobras financiou a campanha da eleição de 2014.

    Azevedo diz não ver "Dilma encerrando o mandato, considerando o que vem pela frente e considerando o desempenho dela". "Acho que talvez a solução venha via Tribunal Superior Eleitoral."

    Já Melo acha que falta um "batom na cueca" e apoio político, e que, portanto, não haverá impedimento da presidente Dilma.

    Mas vieram da boca do diretor da EBC, a empresa estatal de comunicação, as seguintes palavras: "Vai ser um governo enfraquecido até o final. Não haverá impeachment, mas o governo seguirá aos trancos e barrancos."

    Em vez de dois antípodas altivos em suas opiniões, remetendo novamente a Vidal e Buckley, acabamos com a esquerda em melancólica apatia e a direita em triunfante modo "eu te disse".

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