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    Os entraves da democracia no Brasil: uma crise antevista?

    BARRY AMES
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    13/05/2016 02h00

    Há 13 anos, publiquei "Os Entraves da Democracia no Brasil" (FGV-Rio), um estudo das instituições políticas brasileiras. Argumentei que a governabilidade do Brasil era prejudicada por suas regras eleitorais -a representação proporcional em lista aberta, acoplada a grandes distritos e barreiras baixas à entrada de partidos no Congresso.

    Porque os eleitores escolhem candidatos individuais entre centenas de possibilidades e porque os líderes dos partidos não podem organizar as listas de candidatos, a representação proporcional em lista aberta enfraquece os partidos e os líderes partidários. Também enfraquece a conexão entre os deputados e os eleitores. Muitos deputados representam interesses estreitos, às vezes apenas seus interesses pessoais.

    Como resultado dessas regras eleitorais, o Executivo no Brasil inevitavelmente carece de apoio legislativo estável. Os presidentes são forçados a construir e reconstruir coalizões multipartidárias não pela negociação de políticas, mas pela distribuição de postos ministeriais, verbas eleiçoeiras e cargos públicos.

    Presidentes do Brasil

    Alguns cientistas políticos brasileiros consideraram que meu livro era crítico demais ao sistema político brasileiro, mas eu jamais imaginei que a democracia pós-1985 fosse desabar ou terminar em um golpe militar, e jamais avaliei o Brasil tendo os Estados Unidos como parâmetro. (Sim, a política atual dos EUA é bastante ridícula!)

    Achava, simplesmente, que o sistema político brasileiro era lento, dispendioso e propenso a impasses. E previ que, quando chegasse ao poder, o PT perderia sua reputação única de "partido limpo".

    Ao longo dos anos, o "Ibope" do livro foi como uma montanha russa: em alta durante o mensalão, em baixa nos anos de crescimento, em alta de novo com a Lava Jato e a crise do impeachment. Reavaliemos: "Os Entraves" se sustenta, à luz dos 13 anos passados e da crise atual? Continua capaz de iluminar os problemas do Brasil?

    Meu argumento parecia mais fraco no segundo mandato de Lula e na transição para Dilma. O Congresso aprovou os principais projetos de Lula, os líderes partidários tinham suas bancadas sob controle e as agências de controle fiscal investigaram e puniram funcionários corruptos.

    É claro que o boom das commodities havia enfim transformado o Brasil em "país do futuro", e administrar uma coalizão é mais fácil quando a arrecadação tributária está em alta. O mensalão demonstrou que o PT havia adotado o clientelismo de varejo, mas a exposição do escândalo era prova de que ocultar a corrupção se havia tornado mais difícil.

    PT, 13 anos no poder

    Acredito que meu argumento fosse basicamente correto e que a expansão econômica, combinada à habilidade de Lula, tenham ocultado os pontos fracos nas instituições políticas brasileiras.

    Ainda assim, eu desconsiderei dois fatores que condicionam os sucessos e os fracassos da esquerda.

    O primeiro fator são as clivagens sociais. A clivagem política fundamental no Brasil é a de classe social. Clivagens de região, raça e religião -as que dominam as eleições nos EUA- contam pouco no Brasil. Mas a desigualdade brasileira é enorme, e por isso grandes maiorias de eleitores se beneficiam de políticas pró-pobres. Para sobreviver, a direita precisa ser clientelista e não ideológica.

    A fraqueza da direita ideológica também vem da era em que as classes privilegiadas podiam apelar às forças armadas para derrubar governos de esquerda. Ainda que os militares já não atendam às elites, a direita continua a se recuperar da fraqueza que essa muleta causou. Por fim, os investidores estrangeiros protegem as elites ao reagir a políticas ameaçadoras por meio de cortes de investimento e fugas de capital.

    Qual é o impacto disso sobre o argumento de "Os Entraves"? Os presidentes avassalam os potenciais rivais ao distribuir verbas. Mas agora acredito que a política brasileira funcione de maneira diferente a depender da posição partidária do presidente.

    Quando o presidente é de centro ou de centro-direita, a esquerda se opõe ferozmente às propostas do Executivo, mas o presidente ainda precisa praticar o clientelismo e distribuir verbas para comprar o apoio do centro e da direita. Quando é de esquerda, a esquerda apoia as iniciativas presidenciais, mas a direita e o centro continuam passíveis de compra.

    No momento, portanto, o jogo político favoreceria a esquerda, mas apenas se ela não tivesse fracassado na gestão da economia e administrado tamanha corrupção. Ainda assim, o fracasso da direita em agir de maneira coerente, produzindo propostas dirigidas à classe média, não será eterno. A fraqueza prolongada da economia está empurrando a classe média -zangada com a corrupção, com os benefícios aos pobres e com o serviço público precário- para a oposição.

    Os ideólogos conservadores se empolgaram com o antipetismo e revanchismo evidentes em muitos dos comentários sobre Dilma e o PT na mídia oficial e social. Se os conservadores ideológicos seguirem suas contrapartes nos Estados Unidos e promoverem uma clivagem de "valores", em torno de questões como crime, aborto e homossexualidade, suas chances devem melhorar.

    "Os Entraves" também desconsiderou a importância do segundo fator, o oligopolístico setor de construção pesada. O tamanho enorme das sete ou oito empreiteiras capazes de executar grandes projetos -e de sobreviver aos atrasos nos pagamentos do governo- as torna dependentes de contratos governamentais e facilita conluios e manipulação de concorrências. Dado o imenso papel da Petrobras no investimento público, a corrupção é inevitável. As empreiteiras subornam autoridades para que aceitem propostas viciadas; os lucros permitem que elas paguem propinas a líderes partidários e deputados individuais. Já vimos esse filme.

    Em longo prazo, reformas políticas ajudarão, mas o Brasil enfrenta mais que um problema de regras eleitorais: a crise é maior, menor, mais profunda e mais larga. A crise é maior porque a recessão resulta apenas em parte da política macroeconômica do PT; a desaceleração chinesa era inevitável. É menor porque Dilma é particularmente incompetente na política. É mais profunda porque o clientelismo e os oligopólios existem há muito tempo. E finalmente é mais larga porque o Congresso não tem credibilidade. Não só porque deputados corruptos desempenharam papéis importantes no processo de impeachment; também é óbvio que a qualidade da liderança do Congresso reflete corretamente que sua tarefa descambou de administrar clientelismo a administrar corrupção.

    Por fim, a crise criou um clima político e partidário mais conflituoso, mais tóxico, do que qualquer coisa que eu já tenha testemunhado. A estrutura política e a economia política do Brasil precisam seriamente de uma conversação nacional, uma conversação livre de domínio por políticos que buscam proteger suas carreiras políticas.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    BARRY AMES é professor da Universidade de Pittsburgh e autor do livro "Os Entraves da Democracia no Brasil" (FGV-Rio)

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