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    Leia resenha dos dois primeiros livros da série de Gaspari sobre a ditadura

    DE SÃO PAULO

    03/06/2016 02h00

    Apu Gomes/Folhapress
    SAO PAULO, SP, BRASIL, 24-07-2014, 14h00: CONGRESSO ABRAJI. O jornalista Elio Gaspari recebe homenagem no 9 Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, realizado do dia 24 a 26 de julho, no Campus Vila Olimpia da Universidade Anhembi Morumbi, na zona sul de Sao Paulo. (Foto: Apu Gomes/Folhapress, Cotidiano ) *** EXCLUSIVO***
    O jornalista Elio Gaspari recebe homenagem no 9º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo

    Lançados simultaneamente em 2002, "A Ditadura Envergonhada" e "A Ditadura Escancarada" são os dois primeiros livros da série do jornalista Elio Gaspari sobre o regime militar (1964-85).

    Leia abaixo a resenha publicada pela Folha em novembro de 2002, escrita pelo jornalista Mário Magalhães.

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    Gaspari escreve história do regime militar sob ótica de generais

    Terror das bibliotecas, dos arquivos e dos museus, o mofo deu uma contribuição relevante à história do Brasil quando atacou, em 1985, a garagem do sítio do general reformado Golbery do Couto e Silva (1911-87).

    O general criara o SNI (Serviço Nacional de Informações) em 1964, coordenara-o até 1967 e chefiara o Gabinete Civil da Presidência da República de 1974 a 81.

    Na garagem do sítio, nos arredores de Brasília, guardava em torno de 25 caixas com 5.000 papéis acumulados nos anos de poder. Quase tudo confidencial, cultivado por Heitor Aquino Ferreira, ex-secretário de Golbery e de Ernesto Geisel (1907-96), presidente de 1974 a 79.

    O arquivo que mofava foi entregue a um jornalista amigo dos três, Elio Gaspari, cuja casa não tinha pé-direito capaz de receber a relíquia, caso as caixas fossem empilhadas umas sobre as outras.

    No ano anterior, ao fim de uma temporada de estudos de três meses em Washington (EUA), Gaspari jogara a toalha na ideia que o embalava: compor um ensaio de cem páginas sobre o "Sacerdote" (Geisel) e o "Feiticeiro" (Golbery). Queria destrinchar o paradoxo: por que conspiradores de proa de 1964 se tornaram os artífices da política da distensão que resultaria no fim do regime militar (1964-85). Descobriu que só daria conta em um livro. Errou longe.

    Dezoito anos depois do engavetamento do ensaio, chegam hoje às livrarias os dois primeiros livros dos cinco nos quais Gaspari, 58, vai narrar da trama para a deposição do governo constitucional de João Goulart (1919-76) à posse de João Baptista Figueiredo (1918-99) na Presidência, em 1979.

    Os volumes iniciais vão de 1964 a 1974. Sob a rubrica comum de "As Ilusões Armadas", intitulam-se "A Ditadura Envergonhada" e "A Ditadura Escancarada". De largada, foram impressos 50 mil exemplares de cada um.

    A Companhia das Letras investiu R$ 1,1 milhão nos livros, sem contar o custo da equipe da editora, onde alguns funcionários deram plantão exclusivo para o projeto.

    Os dois livros seguintes, da investidura de Geisel à crise militar de 1977, já estão escritos. Pelo menos um deve sair no ano que vem. O último, que se estenderá até a unção de Figueiredo, ainda não foi digitado no computador de Gaspari, o sétimo modelo em 18 anos. Nele estão perto de 30 mil fichas que sistematizam as informações de cinco centenas de livros, 200 entrevistados, milhares de páginas de documentos, publicações jornalísticas e arquivos como o de Golbery-Heitor Ferreira.

    Com base nesse arsenal, Elio Gaspari gestou o que nasce na condição de biografia incomparável do ciclo dos coturnos, a despeito da intenção de pôr o ponto final seis anos antes de Figueiredo deixar a cena. E de o autor dizer que não pensou em escrever a história da ditadura.

    Nunca se fez nada igual no Brasil, nem brasilianistas no exterior. Nem na produção historiográfica acadêmica nem na jornalística. Só notas de rodapé, no obsessivo rigor de não deixar dado sem a fonte respectiva, são 2.542.

    Nunca o olhar foi tão plural sobre um período usualmente descrito pelos relatos de contendores. Gaspari desvenda o que ia pelos porões da repressão, pelos aparelhos (esconderijos) dos guerrilheiros e pelos palácios.

    Isso permitiu-lhe enxergar simultaneamente o Milagre Econômico (era de prosperidade) e a tortura contra oposicionistas, ambos criaturas dos militares —e considerar que a violência foi o fenômeno determinante na caracterização daqueles tempos.

    Além da profusão de revelações obtidas em arquivos nacionais e estrangeiros e em depoimentos inéditos, Gaspari ostenta trunfo raro nos círculos de historiadores e jornalistas. Não "briga" com os fatos para evitar o crédito a quem de direito: emprega como fio condutor de vários capítulos o que de melhor foi produzido sobre o assunto. Não deixa de contar o que merece ser contado. Acrescenta o que apurou e cita escrupulosamente as fontes.

    Garimpou tanto que o arquivo de Golbery, bem como um diário manuscrito de 1964 a 85 por Heitor Ferreira —que hoje vive em Teresópolis (RJ) e traduz livros—, não é protagonista dos primeiros volumes, mas os pontua com novidades. Será imprescindível a seguir, quando o "Sacerdote" e o "Feiticeiro" protagonizam a história como espécie de "heróis da abertura".

    O primeiro livro começa com a tentativa de golpe ensaiada pelo ministro do Exército Sylvio Frota em 1977, numa reconstituição à altura da excelência de um capítulo do clássico "Combate nas Trevas", de Jacob Gorender: o reencontro do comunista Carlos Marighella (1911-69) com o trotsquista Hermínio Sacchetta (1909-82) na década de 1960.

    A diferença é que Gaspari repetiu várias vezes o feito, como ao expor o ocaso de Goulart —numa passagem de ópera-bufa, o general golpista Olympio Mourão Filho (1900-72), depois de pôr o bloco na rua, almoça em casa, veste o pijama e tira uma sesta.

    Ao perfilar o SNI, Gaspari cita o documento em que o órgão delira ao cogitar uma invasão de Portugal pelo Brasil em 1975. Com tanta informação e notas de pé de página, soa como proeza a elegância narrativa.

    Assim inicia o capítulo sobre o Ato Institucional número 5, que endureceu o regime: "Às 17h da sexta-feira, 13 de dezembro do ano bissexto de 1968, o marechal Arthur da Costa e Silva, com a pressão a 22 por 13, parou de brincar com palavras cruzadas e desceu a escadaria de mármore do Laranjeiras para presidir o Conselho de Segurança Nacional, reunido à grande mesa de jantar do palácio. Começava uma missa negra". No pé, as fontes.

    A Ditadura Envergonhada (Vol. 1)
    Elio Gaspari
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    Para divulgar o lançamento, a editora não terá o autor em sessões de autógrafos, entrevistas, programas de TV. Nascido em Nápoles, Itália, e criado na Lapa boêmia do Rio, ele diz que o que tem a dizer escreveu.

    Jornalista desde os anos 60, foi auxiliar de Ibrahim Sued em sua coluna social, editor de Política do "Jornal do Brasil" e diretor-adjunto da revista "Veja", da qual foi correspondente em Nova York. Hoje é colunista da Folha e de "O Globo". Segue trabalhando na história da ditadura —falta um volume—, com a ajuda da biblioteca de 6.000 livros e seu arquivo. Só o de Golbery preenche 16 gavetões de ferro. Tudo lotando o apartamento que comprou no primeiro andar do prédio onde já morava, em São Paulo. A "Biblioteca Malan", como batizou.

    Pôde adquirir o imóvel, afirma, graças à política de juros altos do presidente Fernando Henrique Cardoso, do ministro Pedro Malan e do ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco. Enquadrou as fotos dos três, pendurou-as numa parede e, debochado, tascou a faixa: "Eterna gratidão".

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