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    Leia resenha do quarto livro da série de Elio Gaspari sobre a ditadura

    DE SÃO PAULO

    03/06/2016 02h00

    Apu Gomes/Folhapress
    SAO PAULO, SP, BRASIL, 24-07-2014, 14h00: CONGRESSO ABRAJI. O jornalista Elio Gaspari recebe homenagem no 9 Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, realizado do dia 24 a 26 de julho, no Campus Vila Olimpia da Universidade Anhembi Morumbi, na zona sul de Sao Paulo. (Foto: Apu Gomes/Folhapress, Cotidiano ) *** EXCLUSIVO***

    Lançado em 2004, "A Ditadura Encurralada" é o quarto volume da série do jornalista Elio Gaspari sobre o regime militar (1964-85).

    Leia abaixo resenha e reportagens publicadas pela Folha na ocasião do lançamento do livro, em junho de 2004, escritas pelo jornalista Marcos Augusto Gonçalves.

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    Em "A Ditadura Encurralada", Gaspari narra os anos Geisel

    Eles tinham entre 7 e 11 anos quando o presidente João Goulart foi deposto e entre 11 e 15 quando os militares editaram o Ato Institucional Nº 5. Viram os tanques soviéticos silenciar Praga e Neil Armstrong chegar à Lua.

    Comparavam o autoritarismo soviético ao da ditadura brasileira, desprezavam a galeria cultural do Partidão e viam nos comunistas tradicionais mais adversários do que aliados.

    Em "A Ditadura Encurralada - O Sacerdote e o Feiticeiro", quarto volume de uma obra que recobre os anos da ditadura militar, o jornalista Elio Gaspari os apelidou de Geração 77.

    Ela é uma das protagonistas do livro, lançado hoje, que narra o embate entre o "árbitro do gradualismo", o general Ernesto Geisel, e o "patrono do porão", o ministro do Exército, general Sylvio Frota, que culmina com a demissão deste último no dia 12 de outubro de 1977.

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    Vladimir Herzog foi o 38º "suicida" do regime militar

    Por volta das 22h do dia 25 de outubro de 1975, uma mensagem foi endereçada à Agência Central do Serviço Nacional de Informações (SNI). Notificava o suicídio do jornalista Vladimir Herzog. Ele se apresentara na manhã daquele mesmo dia ao Destacamento de Operações de Informações do Segundo Exército (DOI), em São Paulo, depois de ter sido abordado na noite anterior, na TV Cultura, por agentes dos serviços de segurança. Na página 176 de "A Ditadura Encurralada", Elio Gaspari contabiliza: tratava-se do 38º suicida do regime e o 18º a matar-se por enforcamento.

    Herzog assumira a direção de jornalismo da Cultura em 1º de setembro e fora identificado pelos órgãos de informações como colaborador do Partido Comunista Brasileiro. Convocaram-no para "prestar esclarecimentos".

    Seu assassinato é um dos episódios cruciais do período retratado em "A Ditadura Encurralada". Os desdobramentos do episódio conduziram Gaspari a um tema que em outros tempos chegara a menosprezar, mas ao qual reservou lugar de destaque no livro: as movimentações da geração estudantil que se seguiu à de 1968.

    Gaspari chamou-a de Geração 77 (ano das passeatas) e notou seu aparecimento nas reações ao suicídio forjado no DOI: "Duas gerações estavam mobilizadas pela morte de Herzog. Na primeira vinham os 300 automóveis que seguiram o cortejo fúnebre até o cemitério israelita. Na segunda, os estudantes da USP. Uma testava o próprio medo. A outra testava o medo alheio".

    Os que testavam o medo alheio —os ex-militantes estudantis hoje com idades em torno de 50 anos— não deixarão de se reconhecer na descrição:

    "Eram um novo tipo de militante. Detestavam a mitologia que dominava o patrimônio histórico-político da esquerda. Para eles, João Goulart era um personagem do passado; a União Soviética, ditadura que mandara os tanques à Tchecoslováquia (...). Desprezavam os ícones que simbolizavam 30 anos de hegemonia do Partidão na cultura brasileira. Portinari era um mau pintor. Jorge Amado, escritor banal. Ao sambão preferiam o rock, à poesia engajada do CPC [Centro Popular de Cultura] da UNE, a lírica de Mário Faustino. O horror ao nacional-popular levava-os a ver na canção 'Caminhando', de Geraldo Vandré, mera demagogia".

    Gaspari capta um perfil geracional no qual se encaixam estudantes de diversas tendências, militantes ou não. Mas o "case" eram os rapazes e moças que se aglutinavam, em São Paulo, em torno da corrente trotskista Liberdade e Luta, a Libelu: "Não eram majoritários nem hegemônicos, eram simbólicos. Nas suas festas havia pessoas bonitas, maconha e Rolling Stones".

    Há diferenças notáveis, que não passam despercebidas pelo autor, entre a Geração 77 e a de 68. A juventude dos anos Geisel entrou em cena sob o signo da vitória: ela pôde votar em 1974, e o resultado deixara o braço parlamentar do regime em situação desconfortável num Congresso consentido e policiado. "O pedaço dessa mocidade que alinhava com a oposição não carregava derrotas. Adolescentes durante o surto terrorista, votaram pela primeira vez em 1974 e presenciaram a vitória do MDB. Era a ditadura que tinha medo deles, não eles dela."

    Gaspari observa que a lógica do regime fazia supor que houvesse uma identidade do novo movimento estudantil com o anterior e constata a desorientação dos serviços de informações. Os agentes do regime insistiam em ver na Geração 77 o dedo do velho Movimento Comunista Internacional, "sob a batuta do governo soviético". Um engano.

    Nem por isso, os estudantes que desfilaram depois do golpe parlamentar conhecido como "Pacote de Abril" deixavam de causar rebuliço nos porões do regime, onde temia-se a mudança dos ventos, conspirava-se contra a ideia de distensão política e reuniam-se evidências de que o comunismo continuava sendo uma ameaça ao país, contra a qual Geisel e seu colaborador mais próximo, Golbery do Couto e Silva, não estariam reagindo à altura.

    A Geração 77, que mostrara a cara após a morte de Herzog, reunindo-se na catedral da Sé com d. Paulo Evaristo, d. Hélder Câmara e o rabino Henry Sobel, viria tempos depois a contagiar o país. Continuaria desafiando a ditadura e a sentir o sabor da vitória. Os porões foram a seu encalço, mas não atingiram o intento de restabelecer as trevas de anos passados.

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    Extrema-direita militar atacava general Golbery

    Reprodução
    Ilustração em panfleto da extrema-direita representa general Golbery do Couto e Silva
    Ilustração em panfleto da extrema-direita representa general Golbery do Couto e Silva

    À primeira vista, a ilustração ao lado, um boneco enforcado, representando o general Golbery do Couto e Silva, poderia parecer coisa de estudante. Mas era coisa de militares de extrema-direita. É uma das muitas representações de Golbery num panfleto que circulava naqueles dias, intitulado "A Novela da Traição". Nele, vocalizavam-se os ódios e apreensões dos militares insatisfeitos com a ideia de uma "distensão" política e dos agentes que agiam e torturavam nos porões do regime.

    Golbery e Geisel, especialmente o chefe do Gabinete Civil, eram tratados como traidores dos ideais revolucionários de 1964. A "tigrada" esperneava e temia que os ventos mudassem.

    A simples ideia de que pudesse haver apurações e inquéritos para apurar torturas e "suicídios" deixava os porões da ditadura em polvorosa. O panfleto não escondia suas preferências pelo então ministro do Exército, "o bravo e honrado general Frota".

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    Ana Cristina Cesar simboliza geração

    Nem tudo era militância política na Geração 77. Uma das predileções do "braço cultural" da juventude dos anos Geisel era a poesia. Não exigia meios, pegava carona na cultura "subversiva" do mimeógrafo, circulava de mão em mão em revistas e edições alternativas e até aglutinava algum público em sessões de leitura.

    O fenômeno ocorreu país afora, mas coube à carioca (que mais parecia uma inglesa) Ana Cristina Cesar ficar como uma espécie de símbolo literário da geração. Sua sofisticação intelectual, a qualidade de sua aventura poética e as circunstâncias trágicas de sua morte (suicidou-se em outubro de 1983) compuseram a personagem misteriosa e encantadora.

    Ana detestava a grossura da cultura de esquerda que extraía do engajamento conteudístico seu principal valor, em detrimento da qualidade estética das obras. Causava-lhe enjoos a inclinação naturalista de alguns escritores e artistas, sempre dispostos a besuntar a arte de povo, pregar para convertidos e trombetear o futuro redentor do socialismo. Gostava de Caetano Veloso, Baudelaire e Stephane Mallarmé. Não trocaria alguns versos de Jorge de Lima e Manuel Bandeira por toda a obra de Ferreira Gullar e não perdia um capítulo da novela "O Astro", de Janete Clair —o bastante para qualquer comunista arquivá-la na pasta dos "alienados".

    Em "A Ditadura Encurralada", Ana, maníaca por diários, pontua a narrativa de Gaspari sobre a Geração 77 com suas notas: "Teve época em que eu piamente acreditei que bastava ter opiniões de esquerda para ser de esquerda. A ideologia vinha primeiro. É a política alucinatória". Ela manteve ligações pessoais com militantes estudantis da época e participou do jornal "O Beijo", idealizado pelo jornalista Julio Cesar Montenegro, no qual havia alguns responsáveis pelo "Avesso", da USP, citado no livro.

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    "A Ditadura Encurralada" traz fatos novos e relata queda de Frota

    O general Ernesto Geisel não tinha em mente um projeto democrático, apenas um plano de institucionalização do regime que concederia terreno para o exercício da liberdade "responsável", sem abrir mão de instrumentos ditatoriais. Queria colocar uma pedra sobre o histórico de torturas e mortes do porão e, ao mesmo tempo, manter de pé os ideais do golpe militar de 1964.

    Esse projeto, representado pela ideia da "distensão" política, desagradava tanto a extrema-direita e os agentes dos órgãos de segurança quanto a oposição liberal e de esquerda. Classificado por Gaspari como "árbitro do gradualismo", Geisel via-se ora "emparedado" pelos seus radicais, ora pressionado pela crescente insatisfação da chamada "sociedade civil". É nos interstícios dessa dialética que se desdobra a narrativa de "A Ditadura Encurralada". Gaspari retrata a "anarquia" do porão, as reações da oposição —consentida ou não— e os passos de Geisel e de seu chefe do Gabinete Civil, general Golbery do Couto e Silva.

    Do porão emergem alguns episódios conhecidos e outros inéditos. Caso, por exemplo, dos detalhes acerca dos espantosos contatos entre o SNI e o general Antônio de Spínola, o lendário líder da revolução portuguesa de abril de 1974, que perdera poder, tentara um golpe e fugira para a Espanha, em março de 1975.

    Spínola queria o apoio da ditadura brasileira para um plano mirabolante de invadir seu país. Não conseguiu exatamente o que desejava, mas se reuniu com coronéis do SNI e obteve alguma ajuda —como dinheiro e documentação falsa.

    Outro episódio conhecido, ao qual o livro acrescenta informações desconhecidas, é o encontro entre Rosalyn Carter e Geisel. A mulher do novo presidente norte-americano veio ao Brasil para tratar de uma nova agenda internacional da potência que apoiara o golpe de 1964: os direitos humanos. Seus diálogos com um furibundo presidente Geisel são reproduzidos com minúcias por Gaspari, que teve acesso às notas da tradutora.

    A política externa de Carter foi um novo complicador para a ditadura brasileira, que via erodir alguns pilares de suas bases de sustentação. A deterioração do "milagre econômico", a inflação, o choque do petróleo, a estatização desenfreada, o dispendioso acordo nuclear com a Alemanha e o surpreendente reconhecimento do novo governo de Angola, apoiado por Fidel Castro, contribuíram para gerar insatisfações internas e externas, tanto à direita quanto à esquerda. O próprio empresariado paulista, que sempre se mantivera ao lado do regime, começava a emitir alguns sinais de descontentamento.

    Emparedado pelo porão, atacado pela oposição e pelos estudantes, Geisel procurava administrar a situação distribuindo punições e concessões a todos os lados. Precisava, no entanto, tratar do futuro de seu projeto. E isso significava começar, com a necessária antecedência, a escolher seu sucessor. Muitos nomes foram cogitados, mas nenhum deles afastou Geisel e Golbery do preferido: o general João Baptista de Figueiredo, o comandante do SNI.

    O primitivo general ungido por Geisel, cuja Presidência veio a se revelar um completo desastre, era a alternativa ao candidato do porão e da extrema-direita, o general Sylvio Frota. Inúmeras vezes o presidente já havia pensado em demiti-lo, mas em todas elas Frota soube defender suas peças e evitar o xeque-mate.

    Finalmente, em 12 de outubro de 1977, Frota perdeu a partida. Gaspari recorre a imagens do jogo de xadrez para narrar —em ritmo de "thriller"— os movimentos de Geisel para bater o oponente. Demitido, Frota divulgou um manifesto denunciando a "complacência criminosa com a infiltração comunista e a propaganda esquerdista". O que veio depois, Gaspari narrará no próximo e último volume de sua obra —que começará a escrever proximamente na Universidade de Harvard, nos EUA.

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    Obras devem se tornar referência na historiografia da ditadura

    O conjunto da obra está destinado a se tornar o que se chamaria de "referência obrigatória" na historiografia da ditadura militar brasileira. Impressionam a quantidade e a qualidade das informações, não apenas pelo ineditismo do material colhido dos arquivos do general Golbery e das "longas, pacientes e sinceras" entrevistas concedidas por ele e pelo presidente Geisel ao autor, mas também pela maneira como se reconstituem episódios a partir do reprocessamento de versões extraídas de recortes da imprensa e fontes bibliográficas.

    Todas as virtudes do jornalista Elio Gaspari —que não são poucas e têm marca autoral— comparecem no livro: a apuração exaustiva, o engenho no ordenamento dos fatos e o estilo.

    É disso, afinal, que se trata: um trabalho no qual o olhar e a faina do repórter, do editor e do redator de mão cheia se impõem. Não se espere, portanto, ao longo da leitura a visita do historiador-sociólogo ausente dos volumes anteriores. Na história de Gaspari contam menos os grandes processos e os movimentos estruturais do que as personalidades, com seus traços de caráter, seus humores, suas audácias e fraquezas.

    Contam mais, também, a inclinação pelo caso fechado a pano rápido, o gosto por pequenos e significativos episódios, o prazer pelo anedótico e a paixão pela personagem. De certa forma, Gaspari comporta-se diante da história como quem deseja escrever-lhe um romance. Ao romanceá-la, no entanto, não o faz à moda dos que embaralham realidade e ficção. Jornalista, mantém-se fiel às fontes, de modo que a mão do escritor aparece na concepção, na costura e no feitio.

    Como das vezes anteriores, há uma seleção vocabular característica e uma afeição peculiar pela frase. Nada mais "gaspariano", por exemplo, do que descrever o general Délio Jardim de Mattos como um homem calmo e irreverente que "passava pelas crises como se elas fossem coquetéis". Ou não resistir a destacar a sentença do ministro Mario Henrique Simonsen, segundo a qual "o poder é tão embriagador que passei a considerar o uísque supérfluo".

    Em "A Ditadura Encurralada", como em todo velho e bom romance, há um conflito central. De um lado temos os generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva; de outro, o ministro do Exército Sylvio Frota. Geisel e Golbery defendem, da trincheira da Presidência, a distensão política. Frota comanda o que Gaspari chama de "anarquia militar".

    É o duelo do poder palaciano e do ordenamento institucional contra a autonomia do porão e a cegueira extremista; o embate entre a perspectiva de redemocratização e o caminho de volta às trevas. A armadilha está armada: os primeiros irão representar o bem, e o segundo, o mal.

    Certamente, Elio Gaspari apresenta fatos que matizam o conflito e servem para contornar o risco do maniqueísmo. Lembrará –como já fizera em outras ocasiões– o impressionante currículo de conspirador de Geisel, o fato de que o general alinhou com a tortura e a morte de prisioneiros políticos, além de não nutrir nenhuma simpatia pelo que se entende por democracia. Ainda assim, faz-nos torcer pelo funéreo personagem.

    Há um Geisel de Gaspari. Pesa a seu favor o fato de o seu perfil emergir de contatos diretos e das impressões colhidas do convívio com seu círculo pessoal. O autor teve condições incomuns para formar um juízo a respeito de seu personagem e da maneira como deveria construí-lo. Mesmo assim parece um pouco demais enfeitá-lo como representante do "poder republicano" ou da "autoridade constitucional" em antagonismo com a insubordinação militar. Naquele Brasil, Constituição e República ou eram um sonho ou entes ficcionais.

    A Ditadura Encurralada (Vol. 4)
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    Não obstante, havia o conflito. Esgrimavam a extrema-direita de Frota e seus cães de guarda e a direita austera do ditador de plantão e seu astuto chefe do Gabinete Civil. Gaspari reconstitui as trajetórias da previsível colisão de maneira admirável, ora fechando o foco e congelando a cena sobre determinados fatos, ora restaurando as sequências ou emoldurando a trama na paisagem mais ampla dos acontecimentos nacionais e internacionais.

    Uma das facetas do livro mais caras ao autor é a que se refere à Geração 77, à maneira como ela foi percebida pelos órgãos de segurança e ao papel que desempenhou na reformulação do campo das esquerdas —contribuindo para desalojar o Partidão de sua velha hegemonia.

    Aqui, curiosamente, se rompe o diapasão. Se ao longo da narrativa predomina a minúcia factual, nas páginas dedicadas à "garotada" que sai às ruas após o "Pacote de Abril", o trabalho interpretativo se sobrepõe ao descritivo. Encolhem a extensão e a profundidade dos detalhes (os personagens da época certamente encontrarão lacunas e nem sempre estarão de acordo com o que se relata) e cresce a perspectiva conceitual acerca do fenômeno. O essencial predomina sobre o acidental. E fica aberta a trilha para que novas incursões a desbravem.

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