• Poder

    Thursday, 02-May-2024 11:27:11 -03

    Réplica

    Conti critica meu trabalho de maneira descontextualizada

    AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO
    DE ESPECIAL PARA A FOLHA

    26/07/2016 02h00

    No comentário "Os olhos, ah, os olhos", de 5 de julho, Mario Sergio Conti critica o livro "A Resistência ao Golpe de 2016" num texto que se limita a citar em tom depreciativo fragmentos do livro, descontextualizados e sem indicação de autoria.

    Em duas linhas, sem citar o meu trabalho "O Juiz como Protagonista do Espetáculo: a Paranoia como Metáfora para Pensar essa Posição", ele assim pretende refutá-lo: "A caricatura aparece num ensaio que sataniza Sergio Moro. O autor tem a risível audácia de comparar o juiz paranaense ao paranoico clássico analisado por Freud, Daniel Schreber –aquele que, ao comer, jurava que engolia pedaços da língua...".

    Caracterizar Schreber como "aquele que, ao comer, jurava que engolia pedaços da língua" é desconhecer aquilo de que trata o famoso caso clínico de Freud. O que interessa a Freud e a mim, no meu artigo, são os traços estruturais da paranoia, como a "certeza absoluta e delirante; inacessibilidade à dúvida e à autocorreção; falta de acesso ao princípio de realidade e à retificação racional; missão redentora que não raro se apresenta também como sagrada". O delírio de Schreber consistia na crença de que era imperiosa sua transformação em mulher para conceber filhos de Deus, fazendo nascer nova raça de homens para redimir a humanidade.

    Só evoquei o detalhe de "engolir pedaços da língua", um mero acidente alucinatório, para ilustrar a falta de acesso ao princípio de realidade. A certeza de que engolia partes da língua enquanto comia era tão inabalável que não adiantaria mostrar-lhe ao espelho a língua íntegra: ele engolira, sim, e se agora aparecia inteira, era por "milagre divino". A certeza ficava preservada e quaisquer contra-argumentos eram ignorados.

    Não afirmo que Moro seja um paranoico nesse sentido psicótico. Ao contrário, deixo claro que não considero que o seja. O seu "delírio" é de outra natureza. Mas também comporta a certeza prévia da culpa de acusados da prática de crime, ainda que muitas vezes sem prova cabal que sustente a convicção. O processo carrega desde a origem presunção de culpa.

    Essa certeza prévia, como ocorria com Schreber, não cede diante de argumentos em contrário, e a partir dela são buscadas a todo custo as provas que pareçam corroborá-la, desprezando-se a presunção de inocência e o devido processo legal, aceitando-se "provas" obtidas ilegalmente ou mediante o recurso a práticas semelhantes à tortura, como o prolongamento da prisão provisória para pressionar o sujeito a fazer o "acordo" de delação, vazando-se, para a imprensa informações obtidas mediante escutas ilegais, para induzir a opinião pública a pressionar os julgadores nas instâncias superiores a manterem as sentenças de primeira instância. O combate à corrupção serviria de justificativa para práticas judicantes abusivas.

    Foi nesse contexto que tomei traços da paranoia como metáforas para pensar a atuação do juiz Moro e também do aparato chamado de força-tarefa que sustenta a prática desses atos abusivos e que abrange membros da PF, do Ministério Público Federal e da grande imprensa, com destaque às versões que se sobrepõem aos fatos nos noticiários da TV Globo.

    Se o paralelo que fiz é risível, como diz o jornalista, isso é questão de ponto de vista. Afinal, todos podem rir ou chorar do que quer que seja. Se é audacioso, assumo a audácia de dirigir críticas a autoridades e sistemas de poder, se as julgar pertinentes.

    AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO é psicanalista e professor de filosofia do direito

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024