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    Lava Jato

    Filme sobre a Lava Jato quer 'manter o debate ativo', diz diretor

    RUBENS VALENTE
    ENVIADO ESPECIAL A CURITIBA (PR)
    ESTELITA HASS CARAZZAI
    DE CURITIBA

    28/08/2017 19h45

    Ricardo Borges/Folhapress
    Sandra Corveloni(Marisa Letícia) e Ary Fontoura (Lula) em gravação de filme sobre a Lava Jato
    Sandra Corveloni (Marisa Letícia) e Ary Fontoura (Lula) em gravação de filme sobre a Lava Jato

    O filme sobre a Operação Lava Jato terá sua pré-estreia na noite desta segunda-feira (28) em Curitiba (PR), onde nasceu a investigação. "Polícia Federal - A Lei é para Todos" será exibido para convidados em oito salas de um shopping da capital paranaense e deverá entrar no circuito comercial de todo o país no feriado de 7 de Setembro.

    Abordando a trajetória da Lava Jato do ponto de vista dos investigadores, do seu início até março de 2016, o filme é dirigido por Marcelo Antunez, 45, produzido por Tomislav Blazic, 66, roteirizado por Gustavo Lipsztein e Thomas Stavros e estrelado por Antonio Calloni, Flávia Alessandra, Bruce Gomlevsky, João Baldasserini, Marcelo Serrado, Rainer Cadete e Ary Fontoura.

    Membros do Judiciário, da PF e do Ministério Público Federal que atuam na investigação e seus desdobramentos foram convidados para a sessão em Curitiba. Um deles, o juiz federal do Rio de Janeiro Marcelo Bretas, responsável pela condução dos processos derivados da Lava Jato no Rio, chegou a Curitiba no início da tarde.

    Em entrevista à Folha, o diretor do filme, Marcelo Antunez, 45, disse que a intenção da obra é "não deixar morrer" o debate sobre o combate à corrupção. O cineasta contou ter votado no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em todas as eleições que ele disputou. Entre outros episódios, o filme tratará da condução coercitiva de Lula, interpretado por Ary Fontoura, para depoimento numa das fases da Lava Jato, o que já despertou ataques de parlamentares do PT.

    Segundo Antunez, os investidores do filme, orçado em R$ 16 milhões, valor considerado alto para os padrões brasileiros, pediram para manter seus nomes sob sigilo porque temem represálias ou simplesmente não querem ver seus nomes publicados na imprensa.

    Segundo o diretor, os investidores tiveram de assinar cláusulas de compliance nas quais afirmam não ter sofrido acusações de corrupção. Os produtores disseram ter aberto mão de tentar incentivos fiscais porque poderia haver "um conflito ético".

    Leia trechos da entrevista concedida por Antunez à Folha num hotel em Curitiba.

    *

    Folha - Como as pessoas reagiram ao filme nas sessões de teste?
    Marcelo Antunez - De uma maneira geral, as pessoas estão gostando bastante do filme. A história está clara, e isso era um temor que a gente tinha desde o início. Essas investigações, tramas policiais, são às vezes complexas, e essa é uma das mais complexas que eu já vi. Acho que nunca ninguém viu algo tão complexo, com tantos desdobramentos inimagináveis. Então uma das nossas preocupações lá atrás, desde que a gente começou o roteiro, era que ficasse bem clara a trama, que as pessoas pudessem entender a história, mesmo que para isso a gente tivesse que explicar alguns conceitos. A gente tinha esperança de que ao longo do desenrolar dessa história as pessoas ficassem mais próximas de alguns termos, como foro privilegiado, o que vai para o Supremo e o que não vai. De um modo geral, na população, isso começou a ficar mais familiar, antigamente ninguém falava sobre isso. Então a gente foi testando para entender se o que a gente estava explicando estava em demasia ou se a gente estava explicando de menos. Essas exibições funcionam dessa maneira. [O objetivo] era basicamente você saber se a pessoa está entendendo o que você quer dizer. Não necessariamente que gostem ou desgostem. Logicamente que o objetivo de todo cineasta na vida é que o público goste do seu trabalho.

    Folha - Você já disse que não quer fazer a cabeça de ninguém, o que quer dizer com isso?
    O objetivo do filme é acima de tudo entreter, é entretenimento. É ficção, não é documentário. É um filme muito em cima da realidade, mas é um filme de entretenimento. A gente moldou, estruturou o roteiro, para que as pessoas se interessassem, se divertissem, se emocionassem com o filme. Mas extra-entretenimento, o que a gente quer, do ponto de vista político, é que as pessoas entendam que é importante manter ativo esse debate. A gente não pode deixar esse debate, que é o combate à corrupção, morrer. Esse é o fio da meada. Corrupção é uma faceta do problema político que a gente pode ter em qualquer país. Ele não é a origem do problema, é uma faceta. Você vê políticos muitas vezes que não estão trabalhando para o povo, que é a sua função primordial. Acho que essa questão da corrupção é uma janela para [olhar] o setor público, olhar um pouco lá pra dentro. 'Caramba, olha como está nossa política hoje!' Ela está corrompida, distorcida, fugindo ao seu propósito. A gente está com uma situação interessante. O povo de uma maneira geral não se interessou muito por política ao longo do tempo. Passamos décadas em uma apatia, uma inércia, um estado vegetativo. Dizia-se que 'política, futebol e religião ninguém discute'. E não se discutia mesmo. É muito interessante esse momento que estamos vivendo. A gente não pode perder essa conquista, e o filme vai nessa direção: de manter o debate ativo, de não deixar morrer, de fazer as pessoas pensarem que tipo de país elas querem.

    Folha - É esperado que seu filme desencadeie opiniões inflamadas de lado a lado. De que modo você interpreta esse debate que o filme pode gerar?
    É inevitável e é uma ilusão, uma infantilidade, achar que a gente vai querer controlar isso. A gente só pode controlar aquilo que a gente quer dizer e se esforçar para ser claro na nossa mensagem. Mas qualquer ação pode ser interpretada de qualquer maneira e vai ser usada como instrumento, para um lado e para outro. Tem lado que vai dizer, 'olha, tá vendo, a corrupção é assim e assim'. Outros vão dizer, 'tá vendo como está exagerado, o objetivo é outro'.

    Folha - Por que é tão raro os filmes brasileiros tratarem da realidade política da atualidade?
    A minha sensação, e foi uma das coisas que me atraiu muito para esse projeto, é que eu acho que é reflexo da ditadura, que ainda está muito próxima de nós. Acho que a ditadura funcionou para o Brasil como guerras para outros países. A gente vive ainda muito forte dentro da gente as consequências da ditadura. Essa coisa de que não se fala de política vem muito daí. É um medo real, pois as pessoas morreram, desapareceram na época. Eu tenho 45 anos, mas a geração dos meus pais estava lá naquela época. Não se falava mesmo. A gente foi criada dentro desse ambiente. Acho que a questão política nunca foi abordada muito no cinema por esse motivo. A classe artística foi muito perseguida na ditadura. Acho que não faltou vontade, faltou é possibilidade. Foram cassadas as possibilidades. Chico Buarque fazia os protesto de forma muito sutil nas suas letras. Ruy Guerra, Glauber Rocha, tratavam de forma muito sutil. A gente sempre teve muito dessa tendência, de não falar de assuntos muito polêmicas. Acho que esse projeto é bacana por isso, pois a gente pode trazer uma coisa que ainda está acontencendo e colocar isso na tela. É uma oportunidade única.

    Folha - As pessoas vão perguntar sobre a sua motivação política, pois o debate está bem polarizado no Brasil. Como você se define politicamente?
    Eu sempre me defini muito à esquerda. Na verdade sempre votei em candidatos de esquerda a vida inteira, desde que pude votar.

    Folha - Em quem?
    Votei no Lula em todas as vezes que ele se candidatou [rindo]. Votei no PT muitas vezes mesmo. Eu tive essa esperança em 2002, como todo mundo. Infelizmente a gente está percebendo que, de uma maneira ou de outra... Isso é dito corriqueiramente, 'que o sistema corrompe'. Acho que nem o sistema corrompe, o sistema é corrompido já. Há um personagem que diz isso no filme, que o sistema é feito para não funcionar. E parece que é feito para não funcionar mesmo.

    Folha - Está desiludido com a política?
    Desiludido não sei se é a palavra. Estou pouco esperançoso, não estou vendo a saída ainda, mas tenho esperança de que vai haver uma saída. Eu não acho que estamos involuindo, estamos evoluindo, mas ainda não estou vendo resultados concretos. A gente precisa mesmo botar o dedo na ferida, olhar para si, porque não adianta só apontar para fora, ficar dizendo 'olha como os políticos são corruptos'. Mas não olhamos para nós mesmos, pois somos nós que colocamos eles lá em cima, somos nós é que não fiscalizamos, não olhamos, que não fazemos nada de concreto quando sabemos da corrupção. O máximo que fazemos é textão no Facebook para protestar. O que é superbacana, mas isso, isoladamente, não resolve nada.

    Folha - O seu filme tem sido criticado por parlamentares do PT e alguns blogs antes de ser exibido. O que você diria a essas pessoas?
    Opinião todo mundo tem direito a ter. Estão tendo opinião sobre uma coisa que não foi vista. Assista, e se mantiver a mesma opinião, maravilha, mas se você mudar de ideia, seja honesto consigo mesmo. Todo mundo tem direito a mudar de ideia. O mais importante é ficar claro que da minha parte, dos roteiristas, da produção, a gente não tem nenhum interesse em usar o filme como instrumento político de nenhum jeito. Há alguns blogs que insistem nisso e eu não sei de onde tiram. Você pode ter essa percepção, mas seja honesto com você, é só uma percepção, mas de fato não tem nada.

    Folha - O que te levou a fazer o filme?
    São duas coisas: do ponto de vista artístico e como cidadão. Do ponto de vista artístico porque é um thriller e eu acho que a gente não faz isso no Brasil. É o gênero que eu mais gosto e que eu estava doido para cair de cabeça. A gente tem história para burro. O público brasileiro vai ao cinema ver esse gênero o tempo todo, mas são histórias americanas. Nós temos várias, várias, histórias, não é só a Lava Jato, superinteressantes para serem contadas. A gente pode fazer esse gênero no cinema. E a outra coisa é a oportunidade que você tem de debater, de discutir, um assunto que ainda está acontecendo. Que isso, para muitos, pode ser um motivo de afastamento do projeto, pois você tem um receio, 'não, preciso de um afastamento histórico'. De fato, se você se propõe a analisar, é bom que você tenha um distanciamento histórico. Mas eu não me proponho a analisar nada no filme.

    Folha - Falar da realidade atual assusta?
    Eu acho que assusta muita gente. Para mim, não assusta, o que me assusta é a realidade atual, não falar sobre ela [risos]. Todo dia vocês [jornalistas] assustam muito mais a gente do que eu assusto as pessoas, trazendo essas matérias todo dia que são a realidade. Os jornais assustam muito hoje em dia, pois passam uma sensação de que não tem jeito, mas tem.

    Folha - Ao tratar de uma matéria-prima tão atual, as pessoas tendem a comparar com a história real e vão encontrar diferenças. Como você responde a isso?
    Respondo que é cinema, não é documentário. No documentário a gente vai colocar um narrador o tempo todo, vai extrair notícia de jornal. Mas isso não me atrairia para o projeto. E isso já está no jornal todo dia. O jornalismo está fazendo isso muito bem com a Lava Jato, está trazendo muito profundamente tudo, inclusive de diferentes pontos de vista. Cada veículo, os blogs, cada um com posicionamento político diferente, fazem milhões de análises. O que estou trazendo é cinema e como cinema me dou ao direito de fazer algumas licenças poéticas. Por exemplo, nessas cenas de ação do filme, que são poucas, óbvio que aumento um pouquinho, carrego um pouquinho mais na tinta, aumento um pouco o volume, para ficar um pouco mais interessante, pelo gênero, que é um thriller, e você precisa grudar as pessoas ali. Mas a gente está sendo muito fiel em relação às coisas mais delicadas. Por exemplo, a delação do Paulo Roberto Costa, que é um grande deflagrador da Lava Jato. No filme, a delação dele é retratada de forma extremamente fiel. Nós retiramos dos vídeos disponíveis, que são horas e horas, das transcrições, palavra por palavra dali. A gente tomou esse cuidado. Os pontos-chave do que a pessoa disse ou não disse, a gente foi muito cuidadoso.

    Folha - Haverá uma sequência?
    Sim, já estamos escrevendo o roteiro do segundo. E de novo vai tentar ir até o máximo possível na cronologia. Se nada acontecer de muito relevante, a gente iria até agora [agosto de 2017]. Governo Temer, digo mais, esses abalos ao governo Temer, essas ameaças [de fim de governo] que acabaram não se concretizando.

    Folha - E ao PSDB?
    Claro. Eu estou seguindo a verdade, a cronologia do que aconteceu. Se eu trouxesse outros partidos antecipadamente, eu estaria na verdade mentindo. Estaria prestando um desserviço e aí sim eu estaria com uma agenda política. Eu contei até março de [2016] e os partidos que apareceram foram o PP, o PT, o PMDB, e isso tudo está no filme. A partir do ano passado, das delações de Marcelo Odebrecht e do prosseguimento das investigações, você teve uma entrada muito maior dos outros partidos, uma enxurrada de pessoas do PMDB, pessoas do PSDB, e isso tudo vai estar no segundo filme.

    Folha - Dois pontos que são discutidos na internet, o apoio que a Polícia Federal deu ao filme e os nomes dos investidores, que a produção do filme não tem divulgado. Como responde a essas críticas?
    Todo mundo tem direito de ficar achando um mistério. O apoio que a Polícia Federal nos deu foi de duas maneiras: nos recebeu para dar entrevistas, se dispuseram a nos receber e repetir as histórias várias vezes. E isso foi um apoio enorme, ter acesso a essas pessoas. E a gente pôde filmar no estacionamento da polícia, na recepção da polícia. Aí disseram, 'ah, não podia'. Nós filmamos no final de semana! Quantos filmes foram filmados em prédios públicos? A gente pede autorização e consegue ou não. Quantas coisas eu pedi e não consegui? Sobre os investidores, é outra bobagem. É um filme que está falando de um evento que está dividindo o país, que está gerando opinião acalorada em todos os aspectos e represálias de tudo quanto é tipo. Esse não é o primeiro filme que tem vários investidores que preferem se manter anônimos. Nós já fizemos filmes em que as pessoas apoiaram e quiseram não aparecer. Como comédias. O motivo é o mesmo de sempre: temor de represálias e tem outros que dizem o seguinte, 'eu quero investir para ter dinheiro de volta, não quero as pessoas me monitorando'. É normal. Foi totalmente uma opção do investidor. Eles querem ter de volta o dinheiro, como um investimento.

    Folha - Não partiu de vocês?
    Claro que não. Outra coisa que eu quero esclarecer: somos totalmente a favor de leis de incentivo à cultura, mas neste filme específico... Primeiro que achávamos que era um filme com potencial para trazer o público, e isso iria atrair o investidor. E a outra é que ficamos nos questionando se não era mais ético a gente não recorrer a dinheiro público em um filme que fala sobre desvios de recursos públicos. Então a gente optou por não usar esse dinheiro. Quando a gente percebeu isso, o produtor foi atrás de investidores financeiros. Fazer cinema no Brasil é muito difícil. As ideias surgem, e depois vem o processo de orçar, elaborar o roteiro inicial, e aí você vai sair atrás do financiamento. Rodar a bolsinha, bater à porta das pessoas, passar o chapéu, 'vocês não querem ter essa iniciativa, ter as contrapartidas?'. É assim que funciona normalmente. O projeto nasceu com o produtor. Os investidores começaram a se aproximar para poder investir. O produtor imediatamente contratou empresas [de advocacia] e começou a colocar nos contratos cláusulas de compliance. Pois o tempo todo nós somos surpreendidos, a gente acha que determinada pessoa é idônea e de repente seu vizinho de porta está envolvido. São cláusulas com multas altas se por acaso alguém aparecer com algum problema, por exemplo, na área da corrupção. Várias pessoas se aproximaram e o produtor conseguiu identificar, mesmo que indiretamente, alguma relação, e a gente se afastou.

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