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    Lava Jato

    Músico dividiu dias de guerrilha com Carlos Araújo, ex-marido de Dilma

    Depoimento a...
    FERNANDA CANOFRE
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PORTO ALEGRE

    04/09/2017 02h00

    Marcelo Curia/Folhapress
    Raul Elwanger, musico. Foi preso com Carlos Araujo, ex-marido de Dilma Rousseff durante a ditadura.
    Raul Ellwanger, músico e ex-guerrilheiro

    Durante sete meses em 1970, o músico Raul Ellwanger, 69, dividiu um quarto e a vida clandestina com o amigo Carlos Araújo, na Vila Maria, zona norte de São Paulo. Ambos eram guerrilheiros da organização VAR-Palmares e, um ano depois, Araújo se casaria com uma militante do grupo: Dilma Rousseff.

    Os companheiros já se conheciam desde Porto Alegre e foram à capital paulista para substituir guerrilheiros que foram presos, entre eles Dilma. Para não delatar as atividades da organização aos militares, Araújo chegou a se jogar na frente de uma Kombi, diz Ellwanger.

    O ex-marido de Dilma morreu no último dia 12 -a mesma data em que foi preso, em 1970. Até o fim, sempre foi tratado como o conselheiro mais próximo da ex-presidente. O amigo teve o último encontro com ele um mês antes da morte.

    *

    O Carlos foi preso em um dia de semana comum, em 12 de agosto de 1970. Ele saiu de casa cedo, pegou o ônibus, mas já não apareceu no primeiro encontro que tinha marcado, por volta das 7h. No segundo encontro, às 11h, também não. Às 13h, ainda nada. Aí a gente já ligava as coisas. "O Carlos dançou."

    Eu fui para a casa, retirei nossas coisas, documentos e abandonei o lugar. Nós vivíamos, há alguns meses, em duas peças alugadas, na Vila Maria, em São Paulo.

    Ali moravam uns trabalhadores que tinham vindo de Jequié, na Bahia, outros de Minas Gerais, e a gente. Era bem modesto. O banheiro era do lado de fora. A gente tomava banho de água gelada, com todo o pessoal.

    Pra disfarçar, a gente saía todo dia cedo, às 6h, e pegava o ônibus. Tentava ser mais um naquele bairro de trabalhadores. A gente foi aprendendo muito rápido a lidar com isso, para evitar as prisões.

    Se alguém fosse submetido à tortura, tinha 24 horas para segurar o básico, que era o endereço. Era isso que os caras mais queriam, porque sabiam que lá poderia haver mais alguém, documentos, dinheiro.

    Tínhamos vindo de Porto Alegre no início do ano para substituir o pessoal da VAR-Palmares que havia sido preso em janeiro. A Dilma estava entre eles. A repressão já estava muito forte, prendendo todo mundo e ela havia sido deslocada para São Paulo um pouco antes. Minas Gerais foi o lugar que mais sofreu, precocemente, ainda em 1968.

    No RS, eu já estava, praticamente, vivendo escondido. Não ia tocar nos festivais e não aparecia muito. O que fez a gente tomar mais cuidado foram as prisões, em outros estados, de gente que, se fosse submetida a tortura, poderia falar das nossas conexões.

    Eu e o Carlos éramos mais conhecidos um do outro do que Caim e Abel. Eu era compositor, bem jovem, e estava participando de um festival de música, na Faculdade de Arquitetura da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), quando o conheci, em 1968. Ele era um dos jurados.

    Eu tinha 20 anos, ele uns dez a mais. Como eu estava no 3º ano da faculdade de direito da PUCRS, ele logo me chamou para trabalhar como estagiário no escritório do pai dele, seu Afrânio.

    Era o escritório trabalhista mais forte de Porto Alegre. Foram eles que começaram com a questão do adicional insalubridade e fazíamos reuniões com operários e sindicatos, reunindo 400 pessoas. Politicamente, a gente já tinha começado a organizar um grupo em volta das demandas trabalhistas, com pessoas que tinham militado no Partido Comunista. Aquilo foi se transformando numa espécie de partido, numa época em que ter partido era um crime bárbaro.

    A gente começou se chamando de União Operária, mas o grupo era mais conhecido por "Grupo do Carlos". Era da natureza dele ser o líder. Araújo era muito carismático, muito sedutor, muito gentil, muito afável, muito inteligente, esperto, bom polemista. Ele tinha andado nas Ligas Camponesas, trabalhou com o Francisco Julião, em Pernambuco, em Minas Gerais, em 1961.

    O Carlos era um caso gravíssimo do tipo de gente que tem vocação para estar no lugar em que vai acontecer alguma coisa. A gente morar junto, em São Paulo, já estava errado. Ele era um dirigente nacional, que fazia contatos da VAR em outros Estados, eu cuidava da relação com os estudantes.

    A gente não podia falar sobre o trabalho político, sobre nossos contatos. Falávamos de música, cinema, recordávamos nossos amigos em comum. Era quando a gente desafogava um pouco daquela vida tensa, em que passávamos o dia olhando pelas esquinas, com o canto dos olhos. Era uma época muito delirante. Tu fica meio bitolado. Tu só funciona. Passa o tempo todo sempre pensando, pensando, pensando.

    Talvez as pessoas dessa casa em que morávamos nem soubessem quem a gente era, mas não podia arriscar. Eu passei a dormir em casas de estudantes e nos ônibus. Ficava indo e voltando até o fim da linha, do Tucuruvi, do Parelheiro. As prisões continuaram e eu não tinha dinheiro, não tinha mais onde me meter, não tinha documento. A situação era como um dominó caindo.

    Nesses dias em que o Araújo foi preso, prenderam 40 estudantes dos nossos. Chegou o ponto que não aguentei mais, me reuni com o pessoal –e não é com orgulho que eu digo isso– avisei que se eu fosse torturado não sabia o que iria acontecer. Eu falei: não sei se vou ter estrutura para segurar isso aí. Logo fui para o Chile.

    Mas o Carlos segurou. Ele segurou dois ou três dias nosso endereço, segurou o encontro que ele tinha. No segundo dia, quando ele não estava suportando mais, ele forjou um encontro na rua e se atirou debaixo de uma Kombi, tentando o suicídio. Ele acabou indo para o hospital. Lá não podiam mais machucar ele. Eu tenho essa gratidão com ele. Ele não falou.

    A gente se reencontrou só em 1978, em Porto Alegre, quando eu voltei do exílio. Nos encontramos pela rua, sem muita efeméride. Ficou uma amizade morna. Tínhamos amizade, cumplicidade, mas já sem convívio. Ele começou a se candidatar, virou deputado estadual, depois presidente da Assembleia do RS.

    O primeiro relatório sobre mortos e desaparecidos no Brasil foi feito pela AL-RS, em 1984, com ele. Eu achei que ele estava indo para um lado muito tradicional da política, com o pessoal do PDT.

    Há um mês, eu e meu filho fomos visitá-lo, na casa dele. Ele começou a falar e eu gravando tudo com a câmera. Foram 40 minutos com ele contando sobre aquela época, eu fiquei muito emocionado. A gente tinha recordações de namoradas, de São Paulo, das famílias, da dona Marieta [mãe de Araújo] que chegava na Fortaleza de Santa Cruz, no Rio, com um pacote de erva-mate.

    Lembramos da dedicação, da entrega de todos nós. Nós entregamos parte da nossa juventude, corremos todos os riscos, sofremos todas as perdas.

    Imagina falar com uma pessoa que foi submetida a um pau-de-arara... O cara era meu amigo, um líder que eu respeitava, mas com toda a humildade, ficou lá, tomando choque elétrico, para me ajudar. "Eu não moro em lugar nenhum." "Como o senhor não mora em lugar nenhum? Toma mais choque." E fica, e fica. Era um troço horroroso. Eu devo muito a ele.

    Ele foi uma pessoa que viveu, se dedicou ao país, procurou vários caminhos –na juventude com o PCB, depois com a esquerda revolucionária, secreta e clandestina, depois com o PTB, o PDT. Ele é um exemplar típico dessa geração, que nasceu no pós-guerra. É a geração do Cinema Novo, da Bossa Nova, que sonhou com a felicidade.

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