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    depoimento

    Professor singular, Oliveiros S. Ferreira nunca teve medo de ideias

    MARIA HERMÍNIA TAVARES DE ALMEIDA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    23/10/2017 02h00

    J.F. Diorio - 7.abr.1999/"O Estado de S. Paulo"
    O jornalista Oliveiros S. Ferreira

    Oliveiros S. Ferreira (1929-2017), morto neste sábado (21), foi meu professor no Curso de Ciências Sociais da USP, onde começou a lecionar em 1953 na então Cadeira de Política, como era chamado o que viria a ser, mais tarde, o Departamento de Ciência Política.

    Foi um professor como já não conseguimos ser, capaz de prender pela argumentação e seduzir pelas palavras. Nas suas aulas o argumento consistente e aquele que se lhe opõe com a mesma fundamentação se mostravam, um e outro, imersos numa peculiar riqueza de conceitos, fatos, paralelos e interpretações.

    Tudo isso trazia não só conhecimento e inteligência, mas ainda a irresistível tentação da travessura intelectual e um desejo de compartilhar sua cumplicidade, senão com o pensamento exposto, com o ato de pensar.

    Coisa de quem nunca teve medo de ideias, fosse o seu autor o pensador francês Georges Sorel (1847-1922) ou Lev Davidovich, como ele gostava de se referir a um dos seus preferidos, o revolucionário russo Leon Trótski (1879-1940).

    A ironia, que nunca deixou de acompanhá-lo em classe, mal disfarçava peculiar mistura de ceticismo e esperança. Lusbel, uma das formas do demônio, existe, ensinava ele, mas o governo dos homens não está fadado a sucumbir aos seus diabólicos intentos. E é esse não perder de vista jamais a condição humana que o fazia buscar socorro tantas vezes na literatura. Tanto melhor para nós, seus alunos.

    Nos anos 1990, convidado a dar a aula inaugural do curso de graduação em Ciências Sociais, Oliveiros começou sua conferência sobre Karl Marx com uma longa discussão sobre o amor. E por aí ele foi com sua leitura tão pessoal quanto estimulante, que deixou alguns visivelmente incomodados, outros perplexos, e muitos, principalmente os mais jovens, encantados.

    A irreverência, a originalidade, a capacidade de sempre apresentar um ponto de vista diferente são atributos pessoais importantes num intelectual –para não falar num jornalista com luzes próprias. Porém, muito mais do que qualidades que valorizam, ou deviam valorizar, quem as tem, elas são virtudes inestimáveis em um departamento universitário.

    A institucionalização da atividade acadêmica é condição essencial para a produção organizada de conhecimentos. Ela substitui o diletantismo pela profissionalização, o arbítrio subjetivo por critérios socialmente construídos de aferição de mérito.

    Entretanto, a institucionalização acadêmica tem seus riscos. O maior deles é a propensão à conformidade aos padrões consagrados de trabalho científico e às correntes intelectuais dominantes.

    Não é fácil se proteger dessa forma sorrateira de mediocridade que assedia constantemente a vida universitária. Contra ela só a força disruptiva do pensamento que é contra a corrente, que nos força a olhar o mundo de forma diferente do que estamos acostumados.

    No departamento de Ciência Política da USP esse foi o papel de Oliveiros Ferreira.

    De inclinação política à direita, simpático ao golpe de 1964 e bem relacionado com militares, Oliveiros mostrou impecável solidariedade com seus colegas perseguidos pela ditadura. Quando fui detida em 1973 pela Operação Bandeirantes, que negava notícias sobre meu paradeiro, foi a ele que meus amigos recorreram para finalmente me localizar. Um exemplo entre muitos do ser humano generoso que foi.

    MARIA HERMÍNIA TAVARES DE ALMEIDA é professora titular aposentada de Ciência Política da USP e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)

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