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    RÉPLICA

    Todo presidente serve a dois senhores —o eleitor e o legislador

    CARLOS PEREIRA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    09/11/2017 02h00

    Quando pensamos em um regime presidencialista, a primeira imagem que nos aparece é a de um líder político influente, forte, com legitimidade popular para implementar sua plataforma política.

    Ao analisar o presidencialismo bipartidário dos EUA, Richard Neustadt, em livro seminal ("Presidential Power", 1960), observou que a Constituição americana teria gerado um dilema: a criação de um "governo de instituições separadas que compartilham poderes". Se esse dilema é presente no bipartidarismo americano, no presidencialismo fragmentado brasileiro tende a se exacerbar, pois raramente o presidente governa sem aliados.

    Embora os eleitores esperem que o presidente tenha condições de governar e resolver unilateralmente os problemas do país, a Constituição de fato nega tal capacidade. Pois, por terem bases locais de sobrevivência política, legisladores nem sempre compartilham as preferências nacionais do presidente.

    Na sua sempre perspicaz coluna nesta Folha, o sociólogo Celso Rocha de Barros reagiu a interpretações feitas ao meu artigo do caderno "Ilustríssima" (29/10).

    Argumenta Celso que se o governo Temer apresenta baixo custo de governança, isso não se deve à gerência de coalizão, mas sim à exclusão do próprio pilar eleitoral do presidencialismo. Para Celso, diferentemente de FHC, Lula e Dilma, "por não ter sido eleito", Temer prescinde de compromissos com os eleitores.

    Arguto, Celso dá sentido à sua leitura, mas ao mesmo tempo me provoca questionamentos: como explicaríamos diferenças na gestão de coalizões de distintos presidentes?

    Por exemplo, o que teria levado FHC, eleito e reeleito no primeiro turno, a se comportar de forma tão análoga a Temer (supostamente sem o "crivo das urnas") apresentando ambos resultados semelhantes de performance legislativa com custo relativamente baixo de governança?

    FHC e Temer foram capazes de gerenciar coalizões ideologicamente homogêneas e compartilhar poderes com parceiros, mirando a preferência mediana do Congresso.

    No caso de FHC, isso se deu independentemente de dúvidas sobre sua legitimidade eleitoral.

    Portanto, o modo de se relacionar com parceiros e a performance legislativa do presidente não estariam relacionadas a constrangimentos eleitorais.

    Caso interessante também é o dos governos petistas. Os governos de Lula e o primeiro de Dilma concentraram poder no próprio PT, montando coalizões heterogêneas e distantes das preferências do Congresso.

    Ao privilegiar uma relação direta com o eleitor, negligenciando os parceiros em coalizão, teriam sido os governos petistas mais fiéis ao eleitor?

    Medidas como o uso de bancos públicos para reduzir o spread bancário, controle de preços ou desonerações tributárias que favoreceram setores empresariais específicos, por exemplo, foram respostas a compromissos com os eleitores pobres?

    O presidencialismo não deve ser enxergado como um atalho para se contornar as potenciais discrepâncias de preferências entre o presidente (o suposto representante direto da sociedade) e o Congresso.

    Afinal, não é porque uma relação tem natureza conflituosa que ela deve ser evitada a qualquer preço.

    Presidentes necessariamente devem servir a dois senhores: o eleitor e o legislador —pois seja Deus ou o diabo, é sempre o eleitor quem escolhe.

    CARLOS PEREIRA é professor titular da Fundação Getulio Vargas e professor visitante da Universidade de Stanford

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