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    Lava Jato

    Teoria da 'cegueira deliberada' ampara condenações na Lava Jato

    RICARDO BALTHAZAR
    DE SÃO PAULO

    28/12/2017 02h00

    Gabriel de Paiva - 08.dez.2017/Agência O Globo
    Rio de Janeiro (RJ), 08/12/2017 - Os juízes federais Sérgio Moro e Marcelo Bretas e a secretária de Transparência e Prevenção da Corrupção do Ministério de Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União, Cláudia Taya, serão os palestrantes convidados do 4º evento Petrobras em Compliance no Rio de Janeiro. Foto Gabriel de Paiva / Agência O Globo
    Os juízes federais Sérgio Moro e Marcelo Bretas no 4º evento Petrobras em Compliance no Rio

    Juízes que conduzem os processos da Operação Lava Jato vêm usando com frequência uma doutrina jurídica estrangeira para fundamentar condenações pelo crime de lavagem de dinheiro nos casos em que as provas apresentadas contra os acusados parecem mais frágeis.

    Conhecida como teoria da cegueira deliberada e formulada pela primeira vez na Inglaterra no século 19, essa doutrina permite tratar como culpada uma pessoa que tenha movimentado dinheiro sujo sem ter conhecimento da natureza ilícita dos recursos, punindo-a com o mesmo rigor aplicado a quem comete esse crime conscientemente.

    Desde o início da Lava Jato, há três anos, o juiz Sergio Moro, responsável pelos processos que estão em Curitiba, e seu colega Marcelo Bretas, que atua no Rio, condenaram 121 pessoas por lavagem de dinheiro. Eles recorreram à doutrina importada em 13 casos até agora, conforme levantamento feito pela Folha.

    Ao julgar essas ações, os juízes reconheceram que não havia provas de que os réus soubessem da ligação entre o dinheiro movimentado e a corrupção, mas os condenaram mesmo assim, argumentando que tinham motivo para suspeitar do que estavam fazendo e tinham consciência do risco de cometer crimes.

    A legislação brasileira pune a lavagem de dinheiro quando o acusado sabe que o dinheiro é sujo e age com intenção de escondê-lo. Mas muitas situações não são claras assim, como no caso de alguém que aceita transportar uma mala de dinheiro roubado sem saber o conteúdo.

    Nesses casos, a lei prevê punição quando se demonstra que o acusado tinha consciência do risco que corria, mesmo sem intenção de praticar um crime. Mas isso também é difícil de provar muitas vezes, e por essa razão os juízes têm recorrido à doutrina da cegueira deliberada.

    Sergio Lima - 28.ago.2012/Folhapress
    BRASILIA, DF, BRASIL 28-08-2012, 19h00: CPI - Caso Cachoeira - A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPI) que investiga as relações de Carlinhos Cachoeira com agentes públicos e privados ouve o depoimento do empresário Adir Assad, apontado como agente usado pela Delta e outras empresas para lavar dinheiro. (Foto: Sergio Lima/Folhapress PODER)
    Em foto de arquivo, o empresário Adir Assad em depoimento a CPI em 2012

    Em 2015, o empresário Adir Assad e outras duas pessoas foram condenadas por repassar R$ 18 milhões destinados por uma empreiteira a funcionários corruptos na Petrobras. Não havia provas de que soubessem dos acertos feitos pela empresa na estatal, mas Moro os puniu mesmo assim.

    "Ao concordarem em realizar as transações sub-reptícias, em circunstâncias suspeitas, sem indagar a origem, natureza e destino dos valores, com empreiteiras com contratos milionários com o poder público, assumiram o risco de produzir o resultado delitivo", disse na sentença.

    PERGUNTAS

    De acordo com essa visão, uma pessoa que evita fazer perguntas que poderiam confirmar suas suspeitas deve ser punida da mesma forma que alguém com completa consciência da ilicitude de sua conduta, ou dos riscos assumidos.

    O ex-marqueteiro petista João Santana e sua mulher, Mônica Moura, foram condenados com argumento parecido em fevereiro, num caso em que admitiram ter recebido US$ 4,5 milhões de um fornecedor da Petrobras na Suíça, mas disseram ignorar a origem ilícita dos recursos.

    "A postura de não querer saber e a de não querer perguntar caracterizam ignorância deliberada e revelam a representação da elevada probabilidade de que os valores tinham origem criminosa e a vontade de realizar a conduta de ocultação e dissimulação a despeito disso", disse Moro.

    Paulo Lisboa/Folhapress
    O marqueteiro João Santana e a mulher dele, Mônica Moura, deixam a sede da Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba (PR) nesta segunda-feira (1º).
    O marqueteiro João Santana e sua mulher, Mônica Moura, deixam sede da PF, em Curitiba

    Assad e Santana mudaram suas estratégias de defesa após as primeiras condenações e passaram a admitir seus crimes. Moro e Bretas voltaram a condená-los por lavagem em outros processos, sem menção à teoria da cegueira.

    Muitos advogados criticam o uso da doutrina por considerá-la incompatível com o sistema jurídico brasileiro, ao punir condutas que não são claramente caracterizadas pela legislação como criminosas.

    "Isso amplia o poder dos juízes de decidir arbitrariamente e às vezes de forma casuísta, sem critérios muito claros", diz o advogado Fabio Tofic Simantob, que defendeu Santana e outros réus na Lava Jato.

    DESEQUILÍBRIO

    Em suas sentenças, Moro tem citado a seu favor opiniões de integrantes do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e de três ministros do Supremo Tribunal Federal que mencionaram a doutrina no julgamento do mensalão, Celso de Mello, Luiz Fux e Rosa Weber –que era assessorada por Moro nessa época.

    "A teoria da cegueira deliberada desequilibra a balança da Justiça em favor da acusação, porque estreita o caminho para a defesa", diz o advogado Spencer Toth Sydow, autor de um livro sobre a doutrina e contrário à maneira como tem sido adotada no país. "Com ela, o acusado não pode alegar ignorância, e o Estado não precisa buscar prova."

    Em pelo menos duas ocasiões, Moro absolveu pessoas acusadas de lavagem de dinheiro pelo Ministério Público argumentando que a teoria da cegueira deliberada não era aplicável em seus casos.

    Ele fez isso ao julgar três funcionários da OAS envolvidos com as obras do apartamento que a empreiteira diz ter reformado para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e executivos da Engevix que assinaram contratos com o doleiro Alberto Youssef.

    Para o juiz, nesses casos os acusados estavam apenas cumprindo ordens superiores, e não havia provas de que soubessem da origem ilegal dos recursos que movimentaram.

    *

    COMO A TEORIA FOI USADA
    Casos em que os juízes da Lava Jato usaram a doutrina da cegueira deliberada

    COMO A TEORIA FOI USADA Casos em que os juízes da Lava Jato usaram a doutrina da cegueira deliberada

    Condenados

    ADIR ASSAD

    Empresário

    Acusação

    Empresas ligadas ao grupo Setal contrataram empresas de Assad para repassar R$ 18 milhões em propina para funcionários da Petrobras

    Defesa

    Assad disse que estava afastado do dia a dia das suas empresas e não sabia que os contratos tinham relação com a corrupção na Petrobras

    Sentença

    Assad recebia pagamentos de suas empresas e sabia que praticavam lavagem de dinheiro, mesmo que não soubesse da corrupção, disse Sergio Moro

    Pena *

    8 anos e 4 meses

    *

    IVAN VERNON

    Ex-assessor do PP

    Acusação

    Emprestou sua conta bancária para que o ex-deputado Pedro Corrêa (PP-PE) recebesse R$ 390 mil em propina de fornecedores da Petrobras

    Defesa

    Vernon afirmou que usava a conta para pagar despesas pessoais do deputado e não sabia que o dinheiro tinha origem num esquema de corrupção

    Sentença

    Corrêa foi cassado no escândalo do mensalão e, segundo Moro, Vernon tinha motivo para desconfiar que a origem do dinheiro era ilícita

    Pena *

    5 anos

    *

    JOÃO SANTANA

    Ex-marqueteiro do PT

    Acusação

    Recebeu de um representante do grupo Keppel, fornecedor da Petrobras, US$ 4,5 milhões em uma conta secreta mantida com a mulher na Suíça

    Defesa

    Santana e a mulher admitiram o uso da conta para receber pagamentos do PT, mas disseram ignorar que a origem era a corrupção na Petrobras

    Sentença

    Moro reconheceu que não há prova de que eles soubessem da corrupção, mas concluiu que sabiam dos riscos que estavam correndo

    Pena *

    8 anos e 4 meses

    *

    ANA CRISTINA TONIOLO

    Filha do ex-presidente da Eletronuclear Othon Luiz Pinheiro da Silva

    Acusação

    Assinou contratos com três empresas usadas pela empreiteira Andrade Gutierrez para repassar R$ 3,4 milhões para Othon durante a construção de Angra 3

    Defesa

    Ana Cristina disse que se limitou a assinar os contratos por orientação do pai, sem saber que a origem do dinheiro era a Andrade Gutierrez, nem que era propina

    Sentença

    Para Marcelo Bretas, era fácil perceber que os contratos de consultoria eram fictícios, e Ana Cristina sabia que, ao assiná-los, corria o risco de praticar crimes

    Pena *

    6 anos

    *

    DELMO PEREIRA VIEIRA

    Empresário

    Acusação

    A Andrade Gutierrez usou a empresa para desviar R$ 5,75 milhões para pagamentos de propina com dinheiro em espécie durante a construção de Angra 3

    Defesa

    O empresário admitiu que transportou dinheiro em espécie para funcionários da empreiteira, mas alegou desconhecer o destino dos recursos

    Sentença

    Bretas reconheceu que não há prova de que o empresário soubesse da corrupção, mas concluiu que ele sabia os riscos que corria ao transportar dinheiro assim

    Pena *

    4 anos e 6 meses

    *Somente para o crime de lavagem de dinheiro nos casos em que a doutrina foi usada para justificar a condenação

    Fonte: Processos na 13ª Vara Federal de Curitiba e na 7ª Vara Federal do Rio

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