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    Com preços baixos, Lisboa se reinventa como novo polo artístico

    KARLA MONTEIRO
    DE LISBOA

    30/09/2012 03h00

    Enquanto o bonde range ladeira acima, sacudindo as bifanas, tradicional sanduíche de bife acebolado no pão francês, o artista angolano Yonamine, 37, reflete.
    Ele olha à volta, mira o céu e diz: "É a luz. Lisboa tem uma luz que não se encontra em nenhum outro sítio na Europa". Sítio, em português de Portugal, quer dizer lugar.

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    Sentada na varanda de um casarão do Bairro Alto, reduto da velha e da nova boemia, palco do fado nos anos 1930, a cineasta francesa radicada em Berlim Leila Albayaty, 30, acha que o borogodó está no cotidiano lisboeta. "Muita simplicidade, diferente da Europa fria", comenta ela. "Lisboa me inspira. Berlim é hoje um lugar só de artistas, mas não há personalidade, identidade."

    Numa coisa os dois concordam: o baixo custo de vida, comparado às outras capitais europeias, é o atrativo concreto. E o fato é que está nascendo na provinciana Lisboa uma nova cena cultural, fecunda, independente e internacional.

    A capital portuguesa vive dias paradoxais. Por um lado, o dinheiro sumiu. Até o salário mínimo acabou reduzido, de & 485 (R$ 1.270) para & 449 (R$ 1.170). Estima-se que 300 mil portugueses tenham deixado o país em 2011.

    Pela primeira vez, trata-se da emigração da classe média. Profissionais com formação acadêmica que partiram em busca de trabalho. O desemprego atingiu cerca de 15%. Em junho do ano passado, o governo extinguiu o Ministério da Cultura. Agora, o assunto é decidido pelas câmaras de cultura, que funcionam como as nossas secretarias estaduais.

    O orçamento do país para o setor baixou de ¤ 250 milhões (R$ 650 milhões) para ¤ 150 milhões (R$ 390 milhões), valor equivalente ao disponível para a Ópera de Paris. No Brasil, o Ministério da Cultura dispõe de R$ 2,1 bilhões.

    COSMOPOLITA

    Por outro lado, Lisboa nunca foi tão cosmopolita, tão fervilhante, tão cheia de novidades, com cafés, lojas, livrarias, ateliês, bares e discotecas (em Portugal, ainda se diz discoteca) pipocando em toda parte. Não há estatísticas para quantificar o movimento. Mas basta uma caminhada pela cidade para perceber a transformação em curso.

    Cinco milhões de turistas passaram por lá em 2011. E, além dos que passam, a cidade vê a chegada de jovens artistas oriundos de várias partes da Europa.
    A imigração começou há cinco, seis anos. A comparação com Berlim, ocupada por artistas ao longo dos anos 1990, quando vivia dias de abandono, é inevitável. "Lisboa é uma Berlim em progresso", diz Leila.

    O ex-ministro da cultura e professor de filosofia contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, Manoel Maria
    Carrilho, 61, dá um nome para o fenômeno: "europeização". Segundo ele, essa é a primeira geração de pessoas que entende a Europa como um lugar unificado.

    "Primeiro, o que atrai os artistas é o fascínio da decadência. E, segundo, a comunidade europeia acabou por criar o cidadão europeu. As pessoas circulam. Lisboa está no circuito por ser linda e barata", diz o ex-ministro, no cargo de 1995 a 2000. "O problema é que o investimento em cultura da União Europeia é de 0,01% do orçamento. Há muita gente chegando, mas não sei se haverá um impacto cultural real, pois não existe dinheiro."

    Leila, por exemplo, já morava em duas cidades, Bruxelas e Berlim. Agora incluiu Lisboa entre suas residências. Ela esteve em Portugal pela primeira vez em abril para mostrar no festival IndieLisboa o seu longa-metragem, "Berlin Telegram", em que dirige, atua e assina a trilha sonora. Apaixonou-se. E escolheu a cidade para gravar o terceiro CD -ela também é cantora- e escrever o roteiro do próximo filme.

    "Estou compondo e gravando só com portugueses", diz ela. "É bom ter um pezinho em diferentes lugares."
    A musicista sueca Helena Espvall, 46, quer botar os dois pezinhos em Lisboa. Acabou de aterrissar, há um mês, depois de 12 anos nos Estados Unidos, para desenvolver um projeto de música experimental, com violoncelo e batidas eletrônicas. Trouxe na bagagem o produtor americano Derek Moench, 30.

    Trotando na calçada do Cais do Sodré, região portuária degradada que vem sendo tomada por discotecas, Helena aponta o entorno e arrisca: "Lisboa é misteriosa, orgânica. Em 2006, vim fazer um show e decidi: 'Vou morar aqui'. Encontrei uma comunidade de músicos, senti uma conexão. Crise não faz diferença para mim".

    DENTRO E FORA

    Para sobreviver sem apoio do governo ou da iniciativa privada, os artistas traçam estratégias de guerrilha. O lema é: viver em Lisboa, mas não viver de Lisboa.

    A polonesa Joanna Latka, 34 anos, juntou um grupo de dez artistas, sendo sete portugueses, uma sérvia e uma italiana, e criou o Contraprova, um coletivo de gravuras. Os integrantes mostram e vendem os trabalhos Europa afora, além de promoverem cursos de formação para estrangeiros.

    Com o humor seco das terras geladas, Joanna tem um excelente indicativo econômico para demonstrar a evolução de Lisboa: "Há cinco anos, só existia salada de alface com tomate e cebola. Hoje você encontra até saladas orgânicas, com brócolis e tudo", troça.

    O francês Guillaume Pazat, 41, também montou o seu grupo armado: o coletivo KameraPhoto, com 12 profissionais que trabalham para publicações internacionais. A história do coletivo começa com um encontro amoroso.

    Pazat era velejador e conheceu a portuguesa Sandra Rocha, 38, nos Açores. Abandonou o mar para casar com ela. E ambos viraram fotógrafos.

    No início dos anos 2000, juntaram-se a amigos para discutir ideias. E acabaram criando um dos coletivos mais conceituados da Europa, com exposições em festivais como o de Arles, na França, e o PhotoEspaña, em Madri.

    O maior projeto da trupe no momento é "O Diário da República". Em 2010, eles fotografaram Portugal durante os 365 dias do ano, cobrindo perspectivas diferentes, entre lugares, pessoas e situações. O resultado foi um livro revelador. A ideia é seguir com o projeto até 2020 e ter uma coleção de seis livros.

    "As coisas estão mudando rapidamente por aqui. Lisboa está virando uma cidade de todas as línguas. O contraponto entre crise e internacionalização é interessante", diz Pazat.
    A cidade de todas as línguas concretiza-se na Orquestra Todos.

    Numa tarde suarenta, o bando eclético ensaiava no Centro Desportivo Intendente, bairro que era povoado por prostitutas e traficantes e, há um ano, tornou-se a praia dos artistas, com casarões reformados para abrigar residências artísticas.

    MULTINACIONALIDADE

    Da praça, já se ouvia o rufar dos instrumentos, tão diversos quanto as nacionalidades dos músicos: Índia, Turquia, Espanha, Itália, Brasil, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Argentina, Moçambique, Inglaterra, Alemanha e Portugal.

    "Ainda se pensa em Portugal como um país fechado na sonoridade portuguesa. O leque abriu. A cultura musical em qualquer lugar é determinada pela imigração", diz o baixista italiano Francesco Valente, 38.

    "Há em Lisboa hoje desde as fanfarras do Leste Europeu, passando pelas tendências eletrônicas, até o afrobeat da Nigéria, do Congo, do Zaire... Uma fusão riquíssima acontecendo."
    A riqueza cultural da cena sem fronteiras converge para um casarão de 2.500 metros quadrados, construído em 1800, no Bairro Alto: a Galeria Zé dos Bois (ZDB).

    O espaço abre às 18h, para se ver as exposições e para se beber uns copos, como falam os portugueses. Além da galeria em si, a ZDB abriga uma sala de concertos, sete ateliês, um hotel para artistas, duas companhias de teatro e três bares. O projeto nasceu em 1994, criado por 14 jovens visionários.

    Um dos fundadores, o catalão Natxo Checa, 44, curador da Bienal de Veneza de 2009, rejeita a pecha de independente: "Não somos nem alternativos e nem independentes. Trabalhamos com galerias e fundações do mundo inteiro. Somos uma associação sem fins lucrativos".

    Segundo Natxo, que todos os dias recebe forasteiros, a busca por Lisboa é óbvia. "A cidade é barata, tem sol, uma brisa atlântica fantástica, as pessoas são humildes", diz. "Berlim é para burgueses boêmios."

    Um dia perfeito na capital portuguesa termina no Miradouro do Adamastor, com a imensidão azul do Tejo lá embaixo e DJs no alto. Depois de visitar a galeria que o representa, a Cristina Guerra, a mais importante de Lisboa, Yonamine (o angolano do início dessa história, cujo trabalho foi mostrado na Bienal de Veneza de 2009 e na Bienal de São Paulo de 2010) nos conduziu para lá, para nos despedirmos da luz.

    Ali, no ponto de encontro vespertino da "artistada e da estrangeirada", como diz o angolano, declara:
    "Essa é uma cidade viva. Tem música na rua, a confusão toda, essa vista... Só falta chover notas de 100 euros".

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