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    'Quero peitos de silicone, mas não mexo em nada lá embaixo', diz Laerte

    PEDRO IVO TOMÉ
    DE SÃO PAULO

    24/02/2013 20h00

    Marilia Coutinho, 49, irmã caçula do cartunista Laerte, gosta de uma ideia do autor de "Alice no País das Maravilhas", o inglês Lewis Carroll (1832-1898). "Ele dizia que as pessoas não deveriam depositar suas esperanças de felicidade em algo que podem perder. E veja: você nunca vai perder uma barra de aço."

    Bióloga com pós-doutorado em estudos sociais da ciência e autora de dois livros ("Powerlifting: De Volta ao Básico" e "Estética e Saúde: A Linha Tênue Entre Beleza e Saúde", ambos de 2011), Marilia faz levantamento de peso e é recordista mundial de agachamento "raw" (sem equipamentos). Na categoria até 60 kg, ela, com 1,52m de altura, foi a única mulher capaz de levantar com 175 kg sobre os ombros.

    Seu irmão, Laerte, 61, criador de tiras publicadas pela "Ilustrada", além de colaborações para os suplementos "Folhinha" e "Equilíbrio", veste-se com roupas femininas desde 2009 e adotou o nome Sônia. "Agora quero colocar peitos de silicone", afirma. "Mas não vou mexer em nada lá embaixo."

    Assistentes de fotografia: Pedro Bonacia e Renata Terepins / Styling: Alexandra Thomaz e Tica Bertani
    Laerte Veste: vestido Trash Chic + sandália Calvin Klein / Marilia veste: body Trash Chic + sandália Corello I
    Beleza: João Boccaletto / Assistente de beleza: Adriana Santos / Tratamento de imagem: Adriano Gonfiantini

    A ideia de Laerte/Sônia não é ter duas personalidades nem dois sexos (só dois nomes). O que interessa a ele é acabar com as imposições do que é um homem ou uma mulher. Ele não quer ser nem um nem outro, e sim um transgênero. Ou "transgênera", como prefere, em mais uma subversão (o termo é usado no masculino). Os dois irmãos são próximos. "Nossos caminhos são diferentes, mas lidamos com a mesma realidade. E entramos em atrito com as regras desse jogo."

    O que está em questão aqui é mais do que a realização pessoal, é uma luta contra os estereótipos. "Reivindicamos o direito de ser dono do próprio corpo. Eu quero ser forte, rápida, flexível. Não importa o aparelho genital com que nasci", diz Marilia.

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    SEXO E POLÍTICA

    A ligação entre os dois vai além da familiar. "Temos reflexões tão parecidas que já são quase uma coautoria", diz ela. Ao todo, são quatro os irmãos Coutinho. O mais velho, Mauro, 63, é empresário. Entre o cartunista e a levantadora de peso tem Helena, 59, fotógrafa.

    As buscas de Laerte e Marilia começaram na política. Os dois fizeram parte do Partido Comunista na década de 1970 e a militância deixou marcas profundas em ambos.

    Marilia tinha 15 anos e praticava esgrima quando entrou no partido, em 1978. Chegou a ser campeã brasileira aos 14 anos, mas abandonou o esporte quando começou a levar a militância mais a sério. "No Partidão, achavam que aquilo era um desvio pequeno-burguês. Aí, abandonei o esporte", diz.

    No ano seguinte, entrou para a Convergência Socialista, hoje PSTU. Suas primeiras experiências sexuais aconteceram com líderes partidários das duas organizações. "Sexo fazia parte da política", diz. "Eu estava despertando para a sexualidade e, de repente, tinha que transar para fazer parte do grupo", conta. "Depois, fui estuprada, no PSTU, na Convergência. Fui expropriada de mim mesma."

    Laerte só soube que a irmã tinha passado por problemas no partido muitos anos depois. "Eu também passei por constrangimentos, mas com ela foi uma coisa violentíssima." O cartunista, hoje um bissexual assumido, diz ter bloqueado seu lado homossexual. Em uma campanha para eleições sindicais na década de 1980, chegou a desenhar um personagem da oposição como um gigante gay, usando a homofobia como arma política.

    "Fazer parte daquele movimento foi fundamental para o meu processo criativo, mas sufoquei uma parte de mim para viver como o 'tio Stálin' achava certo", diz, referindo-se ao ditador soviético Joseph Stálin (1878-1953), que perseguiu os homossexuais na União Soviética durante seu governo, dos anos 1920 até a sua morte.

    Laerte militou no Partidão entre 1973 e 1985. Largou quando percebeu "um movimento cultural, de quadrinhos, que era o que queria fazer".

    Marilia saiu da militância em 1981 e, no mesmo ano, recebeu o diagnóstico de psicose maníaco-depressiva. Chegou a tomar 11 remédios ao mesmo tempo. Envolveu-se com drogas, "maconha, ácido, álcool, o que caía na minha mão", passou por "desastres conjugais" e um "parênteses de felicidade": o nascimento da filha Melina, em 1989. Em 2005, tentou o suicídio.

    Quando se recuperou, tomou duas decisões: deixou as drogas –lícitas e ilícitas– e começou a levantar peso. Apesar de estável, a atleta ainda sente a depressão à espreita. "Me disseram que eu viveria no máximo cinco anos sem remédios. Isso não sai fácil da cabeça."

    Laerte também passou por um grande trauma em 2005, a perda de um de seus três filhos, Diogo, de 22 anos, em um acidente de carro durante o Carnaval. Desde então, batalha para se reencontrar profissionalmente: "Gostaria de estar surfando numa técnica que eu já tenho. E acontece o contrário".

    Oito anos depois de seus piores momentos, Laerte e Marilia ainda enfrentam preconceitos. Mas, segundo ele, manter a exposição de suas vidas "pode ser importante para outras pessoas". Marilia completa: "É possível optar pela felicidade".

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