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    Alexandre Herchcovitch expressa nas roupas que cria sua luta contra a caretice

    ALCINO LEITE NETO

    30/06/2013 02h30

    Alexandre Herchcovitch é uma das sensibilidades artísticas mais fortes de sua geração. Ele poderia ter sido diretor de teatro, fotógrafo, músico ou artista plástico -certamente, seria bem-sucedido em qualquer uma dessas atividades. Mas passou a infância e a adolescência na pequena confecção da família, e todo o seu talento se dirigiu muito naturalmente para a arte da costura e a invenção das roupas.

    No início dos anos 1990, aspirante a estilista, ele fez a descoberta crucial para a sua carreira: criar moda não era apenas produzir belas roupas. Significava também exprimir as transformações que afetavam a sua época.

    Foi naqueles anos que um novo underground emergiu em São Paulo, regado à música tecno, em clubes fervilhantes, com fervidas drag queens e fervorosos frequentadores -entre eles, o próprio Herchcovitch, sempre acompanhado de sua musa Geanine Marques, do dândi Johnny Luxo e da rainha da noite ilustrada paulista, Erika Palomino.

    Vestir uma peça de Herchcovitch era, então, um modo de encarnar a pós-modernidade à brasileira: hedonismo e desleixo, ritualismo e festa, globalização e provincianismo, glamour e bizarrice, exibicionismo e pudor, individualismo à luz do sol e coletivismo nas sombras do "bas-fond".

    O seu esforço -e o de seus pares, aqui e no exterior- de desconstruir as roupas e des-hierarquizar os estilos parecia tornar a moda a expressão por excelência do momento: mais rebelde que a literatura, mais louca que o teatro, mais rápida que o cinema, tão necessária quanto a música.

    É este o fundamento da criação de Alexandre Herchcovitch: engajar a moda com as rupturas e loucuras de seu tempo, desafiando o tradicionalismo aborrecido da sociedade e a caretice do próprio mundo "fashion", com seus clichês mercantis de beleza e sexualidade.

    Ao lado de seu cúmplice criativo, o artista plástico Maurício Ianês, ele tentou nunca abandonar esse princípio, mesmo após deixar de ser um estilista do underground, transformar-se numa grife afamada e espalhar sua logomarca de caveira em um sem-número de franquias, mesmo depois de vender seu próprio nome para um grupo de moda e precisar atender às expectativas do crescente mercado de luxo no Brasil.

    Ele vendeu seu nome, mas não vendeu sua alma. Os anos passam, e suas roupas ficam mais e mais sofisticadas e complexas, na construção e nos materiais utilizados. Sem abandonar a essência "pop" de sua criação, Herchcovitch passou a dialogar mais frequentemente com a alta-costura e também com a "alta cultura" -em particular a vanguarda das artes plásticas.

    A moda é uma indústria exigente, muito veloz e bastante cruel com as aspirações artísticas dos estilistas. A arte das roupas, quando existe, ocorre nos interstícios, nos pontos cegos do comércio. É principalmente nos desfiles (e nos editoriais fotográficos) que os costureiros-artistas conseguem exibir a quintessência de sua criação, as peças-chave e as ideias mestras que orientaram a concepção plástica e intelectual do trabalho empreendido (sempre em equipe) antes da temporada.

    Para entender a arte inquietante de Herchcovitch, não basta ir às lojas. É preciso ver também seus desfiles e os livros a ele dedicados, porque é neles que se revela toda a potência de seu talento, em suas várias dimensões: como estilista, "metteur en scène", artista visual e intérprete de seu tempo.

    *Alcino Leite Neto foi editor de moda da Folha e atualmente é editor da Três Estrelas, do Grupo Folha

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