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    "O fast fashion de uma marca gringa pinga sangue", diz Ronaldo Fraga

    POR ADRIANA KÜCHLER
    DE BELO HORIZONTE (MG)

    31/07/2016 02h00

    José Fraga era goleiro do Sete de Setembro, em Minas, até que uma crise e times maiores chegaram e foram levando, um a um, seus companheiros de cancha. Fraga permaneceu fiel à camisa. Numa partida, tomou dez gols do adversário Atlético. 10 a 0. Foi chamado por um jornal local de FFF, Famoso Fraga Frangueiro, mas elogiado por ser o único a resistir.

    Um dos cinco filhos de Fraga, o Ronaldo, virou estilista e ficou conhecido por valorizar as raízes e a cultura brasileira em suas roupas, por contar histórias em seus desfiles e pelo desapego a qualquer tipo de tendência. Esse Fraga também resistiu. No ano passado, viu sua loja, quase um ponto turístico em Belo Horizonte, ser assaltada duas vezes em menos de dois meses. Foram-se roupas, muitas roupas, e tudo mais que havia lá.
    Ronaldo fechou temporariamente as portas enquanto se prepara para abrir outras entre agosto e setembro. Está reformando um casarão dos anos 1920, "num momento em que todo mundo só demole, verticaliza, corre pro shopping atrás de segurança", para transformá-lo não só em loja, mas no Grande Hotel Ronaldo Fraga. A ideia é ir em busca de um tempo perdido.

    "A moda hoje tem dois concorrentes poderosíssimos, que são as novas tecnologias e as experiências, como viajar e viver uma história fantástica. O desafio da moda hoje é trazer isso pra roupa", diz, sentado no chão da casa em obras. Na busca, vai inserir as tais experiências nesse mesmo casarão: além de suas roupas, um café, uma enoteca, uma filial da Barbearia Cavalera, a redação de um site, um piano para saraus e uma parede para projetar filmes para a vizinhança. "Roupa é o que menos importa", ele diz.

    Debby Gram
    Ronaldo Fraga
    O estilista Ronaldo Fraga em seu ateliê, em Belo Horizonte (MG)

    POR QUE NÃO LEVO UMA SURRA?

    A tataravó de Ronaldo foi escrava em uma fazenda em Tiradentes. Mestiço, o pai dele também cresceu por lá, numa família de poucos recursos, e estudou na escola que o rico comendador Bragança construiu e em que deixava as crianças mais pobres estudarem. Toda vez que ia para a escola, o pai de Ronaldo era lembrado que tinha que fazer mais que a média, porque estava ali de favor. Anos depois, quando Ronaldo e seus irmãos iam mal na escola, não levavam sova, mas ouviam uma ladainha do pai: "Vocês não nasceram na fazenda do comendador, não sabem o que é viver na lida da fazenda..." Os meninos desatavam a chorar. "Por que ele não me bate? Por que eu não levo uma surra?"

    Prestes a completar 50 anos, Ronaldo Fraga diz que hoje anda sempre preparado para levar pedrada. A casca grossa se formou há três anos quando fez um desfile sobre futebol na São Paulo Fashion Week com modelos que desfilavam perucas de palha de aço. O estilista, que se autodeclara "marrom", foi metralhado nas redes sociais, e seu nome, associado ao termo racista, virou "trending topic" no Twitter. "Aquilo me assustou. Eu tava falando justamente o oposto, do futebol como a primeira vitória da mestiçagem brasileira, talvez a única. O bombril simbolizava 'agora eu uso o meu cabelo do jeito que eu quiser'", ele explica.

    Ronaldo acredita que a reação teve a ver com um preconceito da própria moda. "Na moda, o lugar é pra beleza anglo-saxônica. Eu, mulato, eu, negro, eu quero ver ainda a beleza anglo-saxônica, de microssaia, de casaco de oncinha." Se a manifestação tivesse acontecido no teatro ou numa galeria, ele sugere, as reações teriam sido diferentes. "Mas quem põe muito a bunda na janela não vai ter a ilusão de sempre se fazer entender."

    Cedo na vida, o pequeno Ronaldo e seus irmãos ficaram órfãos de pai e mãe. E se vestiam com roupas doadas por vizinhos ou parentes. Calças de adulto tinham que ser ajustadas para o tamanho de um menino de oito anos e lá ia a vó de Ronaldo coser bainhas enormes e dobradas, pra que os meninos crescessem junto com as peças. "É por isso que eu faço roupas de ET."

    Debby Gram
    Ronaldo Fraga - estampa

    Hoje, Ronaldo diz que se veste com sobras das próprias coleções. Uma camiseta preta longa, que mais parece um vestido, cobre parte da calça jeans salmão que acaba num tênis roxo. Na última São Paulo Fashion Week, suas roupas de ET vestiram seres estranhos à moda, mas comuns ao noticiário internacional. Levou o tema da crise dos refugiados à passarela e seis deles para desfilar. Ao ler as notícias, começou a ampliar as fotos de imigrantes empilhados em barcos e a observar suas vestes: os listrados árabes, as estampas de flores africanas. Percebeu então que era a roupa a última coisa que os ligava à sua cultura. Daí surgiu a coleção Re-existência, uma das mais elogiadas da última estação.

    TRAVESTIS E SENHORINHAS

    Lá pelo fim da ditadura, um Ronaldo adolescente sonhava em desenhar e caçava cursos de desenho gratuitos, até que achou um de moda no Senac. Foi, escondido dos amigos com quem discutia literatura política e participava de manifestações, se juntar a uma turma formada por travestis e senhorinhas de cabelos lilases. Com a nota maior, ganhou emprego de modelista numa loja em que, sem vocabulário de moda, se especializou em ouvir histórias das clientes para desenhar peças que elas nem sabiam que queriam. "Com isso, tomei gosto pelas histórias absurdas do homem comum." Cursou estilismo na UFMG, ganhou o concurso de uma tecelagem e foi estudar na prestigiada Parsons em Nova York. Emendou outros quatro anos em Londres, ao lado do irmão e também estilista Rodrigo, e voltou sabendo que sua história se passaria no Brasil. O Mercado Central, "o lugar mais cosmopolita de Belo Horizonte", era então um de seus locais preferidos para buscar referências.

    Quando chega ao Mercado Central acompanhado da mulher, Ivana, na hora do almoço, Ronaldo é logo abordado por uma fã em busca de uma selfie. "É um dos maiores estilistas do Brasil", explica a moça a uma amiga. Em seguida, Ronaldo belisca a bunda de um senhor que espera na fila do restaurante. Walter Rodrigues, também estilista, leva um susto até se dar conta de que é Ronaldo o autor da brincadeira. Riem e se despedem.

    Ronaldo Fraga não tem altura pra ser modelo, mas traz um rosto tão forte e cheio de elementos que distrai o interlocutor do foco da conversa. O volumoso topete grisalho desafia a gravidade, o bigode afina e se alonga além dos limites da bochecha e os óculos encaixam duas armações, oval e retangular, em uma só. Na mesa do restaurante Casa Cheia, ele pede o Mineirinho Valente, uma canjiquinha com lombo defumado e costela desossada, acompanhado por uma cachaça Canarinha, do norte de Minas.

    Quando voltou ao Brasil, sua primeira coleção, desfilada em 1996, já "pegou a turma de susto". A moda então era cinza, gelo, bege, e Ronaldo desfilou misturas de turquesa com laranja e verde, "uma confusão sem fim".

    Duas décadas mais tarde, a mesmice de cores, cópias e tendências ainda incomoda o estilista. Cópia bem-feita, ele garante, quem faz são os chineses. "A nossa vocação enquanto brasileiros, curiosamente, é para a autoria", diz, sentado em seu ateliê, cercado pelo cão maltês Chico e por cadernos de desenhos, livros, manequins pelados e bonequinhos de sereias e santos. "Se está se usando amarelo, você vai lá no Shopping JK e tá tudo amarelo. Quem fizer o roxo vai se dar bem."

    Com três núcleos independentes de costureiras produzindo suas peças, Ronaldo aposta que o "slow fashion" tem chance de desbancar a onda das "fast fashions". "O fast fashion de uma marca gringa pinga sangue. Ele murmura. Porque não tem como um tênis custar R$ 30. Não tem como um vestido custar R$ 30. Tem sangue pingando por ali. Tem trabalho escravo. Não tem condição..."

    Tudo isso tem a ver com a polêmica que o estilista gerou em 2011 ao decretar que "a moda acabou" e anunciar que não participaria da São Paulo Fashion Week. Foi atacado por seus pares que chegaram a dizer que a moda havia acabado pra ele porque estava quebrado. "Como quebrei se nunca estive inteiro?", brinca Ronaldo, que, na época, preparava um livro, só pulou uma temporada e logo voltou a desfilar.

    O FIM DA MODA

    Hoje, ele explica que o que quis dizer lá atrás é que a moda, como conhecíamos antes, acabou: a indústria têxtil migrou para os países asiáticos; o Brasil coleciona escolas de moda sem ter fábricas e confecções para empregar esses profissionais; e o consumo de moda mudou, com o público buscando produtos mais exclusivos. "Ressuscitar, como ela era, não dá mais."

    Nesse cenário, Ronaldo vai diversificando suas atividades. Transformou sua antiga residência, onde vivia com Ivana e os filhos Graciliano, 14, e Ludovico, 15, na Casa Floresta, um espaço para eventos, que recebe "desde clube do livro até aniversário de senhorinha de 85 anos". Estreou na televisão, no repaginado "TV Mulher" do Canal Viva, contando causos da moda brasileira. E desenha figurinos para a abertura da Paraolimpíada no Rio.

    "Em épocas de crise, a moda te ensina a importância de mudar de rota o tempo inteiro. Ela tem essa parte que me fascina, que é a de ser espelho do tempo. Nessa loucura que a gente tá vivendo, tem gente dizendo que a moda tá terrível hoje. Não tá, ela tá a cara do tempo."

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