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    Trecho inédito de último texto de Hilda Hilst é publicado

    21/05/2018 15h35

    Elena Vetorazzo/Folhapress/Hilda Hilst
    CAMPINAS, SP, BRASIL, 08-05-1990: Literatura: a escritora Hilda Hilst, durante entrevista em sua chácara, em Campinas (SP)
    CAMPINAS, SP, BRASIL, 08-05-1990: Literatura: a escritora Hilda Hilst, durante entrevista em sua chácara, em Campinas (SP)

    Este texto foi publicado originalmente na Serafina de abril de 2009

    Serafina publica com exclusividade trecho do último texto da escritora, poeta e dramaturga Hilda Hilst (1930-2004)

    Ora escrito à máquina, ora à mão, o texto "O Koisa" ficou guardado por pelo menos dez anos. Até que o escritor José Luís Mora Fuentes, amigo e parceiro de Hilda Hilst durante cerca de 40 anos, aceitou revelar o fragmento ao lado à?Serafina. "Este foi um dos textos escritos por ela nos últimos anos de sua vida. Hilda parou de escrever um pouco antes de morrer, pois não tinha mais saco. A data da primeira página é 25/11/98. Tem cerca de sete folhas, que foram escritas à máquina e depois completadas de próprio punho. Como as mãos dela já estavam um pouco trêmulas, é difícil decifrar alguns trechos. Até eu, que conheço sua letra, tive dificuldade de entender", diz Mora Fuentes, 57.

    O objetivo de Mora, que também preside o Instituto Hilda Hilst, é publicar o material inédito deixado pela escritora. "Vamos fazer um livro especial com fotos, este texto e outros escritos inéditos, que não são ficção. São pensamentos, desabafos, anotações de momentos, um material que parece quase um diário", explica.

    A revelação do texto inédito?"O Koisa" é também a inspiração para o espetáculo "Hilda Hilst - O Espírito da Coisa", baseado na vida e na obra da autora, que estreia dia 8 de maio no teatro do Centro da Terra, em São Paulo, com a atriz Rosaly Papadopol e direção de Ruy Cortez.

    "Eu vi Hilda escrevendo muita coisa. Eu a acompanhava e, várias vezes, era o primeiro a ler o que ela escrevia", conta Mora Fuentes. "Ela dizia: `Sapo, venha ver o que escrevi'. Nós tínhamos alguns apelidos. Eu era o Sapo, e ela, a Lacraia, porque a lacraia ataca e o sapo só se defende. Eu era o bonzinho", lembra o escritor.

    o koisa

    entrei dentro da empada à meia noite e em seguida caguei o grãozinho
    negro dentro da privada de âmbar e comecei a cantar um canto chulo de
    amoras negras mas, belo, coloquial e absurdo como é a vida aos domingos
    depois do arroto e do gorgolejo das tripas
    fétido mas e com sovacos quentes
    quero falar de amor, esse pudoroso que só se mostra
    ausente marmórea mãe de todos nós
    nós de um negro transparente
    o outro gritou no lado dentro da empada:
    cho cho baiacu carniceiro: eu baia? Eu da tua laia?
    eu um de alguém? Eu cu de quantos
    refastelou-se na poltrona de prata dedilhou a harpa
    e começou a falar uma língua impossível de gordas guturais e aves roucas e
    espevitados magriços canibais tomando sopa, uma de ossos e inchaços de
    fígado, verdolengos (poucos, esses mais pro negro):
    ó cara da empada, ó cara ai
    ó rei de poltrona de prata e eu ela
    olha o dedo, e tu quem é, como é que entrou
    na empada? Que é a minha casa?

    Fiquei gelado de horror e requestionasse mágoas e me lembrei de Kaspar
    que sou eu, de aspargos também que aqui não tem, e das aspas que é
    quando eu falo com o coisa (agora me caguei)
    O grãozinho negro voltou, pôs as mãos na cintura rala e interpelou: tu é
    aquele de sempre é? Demorou voltou, ficou doente? Ó pai, devolve-me
    o corpo.

    Fragmento de "O Koisa", texto inédito de Hilda Hilst.

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