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    opinião

    Produzindo 'empresas unicórnios' na terra do futebol e do samba

    OMAR TÉLLEZ
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    16/06/2015 16h52

    Houve um tempo, no passado não muito distante, em que os latinos que viviam nos Estados Unidos só podiam apontar para duas start-ups (empresas iniciantes) de internet e software bem-sucedidas em seus países de origem: MercadoLivre e Despegar/Decolar. Embora essas empresas tenham conquistado grande sucesso, era difícil para nós explicar por que outras start-ups da América Latina não haviam florescido.

    As duas empresas em questão foram criadas nos dias iniciais da internet ( ainda em 1999), e poucas outras se desenvolveram depois disso. Além disso, para aqueles de nós (como eu) com herança e ego brasileiros, o fato de que as duas empresas fossem argentinas era um insulto adicional. De fato, como ilustra a "guerra do futebol" entre Honduras e El Salvador em 1969, durante uma partida de eliminatória para a Copa do Mundo, as rivalidades esportivas transcendem os gramados em nossa parte do planeta.

    Quatro Copas do Mundo depois depois de essas empresas terem sido criadas (uma unidade de tempo importante na América Latina), diversos fatores, na ponta da demanda e da oferta igualmente, sacudiram esse ecossistema de start-ups e plantaram as sementes de um rejuvenescimento.

    INVESTIMENTOS

    Nos anos que antecederam a Copa do Mundo de 2014, com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no comando, o Brasil implementou um plano para levar serviços de Internet de alta velocidade a todas as cidades do país –a preços acessíveis–, como forma de modernizar a economia e criar a infraestrutura tecnológica de que o país necessitava para concorrer.

    Na época, por exemplo, alguns clientes residenciais de banda larga pagavam mais de US$ 250 ao mês por um Mbyte de banda, enquanto nos Estados Unidos os usuários tinham velocidade 10 vezes mais alta por US$ 30 mensais.

    Hoje, mais de 40% dos domicílios brasileiros contam com conexão banda larga em velocidade média de 2,6 Mbytes por segundo.

    SMARTPHONES

    Com o controle que os fabricantes sul-coreanos e chineses conseguiram sobre suas curvas de custo, por meio de volumes ampliados de produção, aparelhos com preço inferior a US$ 100 chegaram ao mercado. Isso resultou em um ponto de inflexão para a penetração dos smartphones, conduzindo-a à casa dos 25% a 35%. Além disso, a crescente competição dos planos de dados de operadoras de telefonia europeias como Telefônica, TIM, Portugal Telecom e Millicom, entre outras, e das locais Claro e Oi, ampliou ainda mais o acesso à tecnologia, com preço acessível.

    Esses desdobramentos permitiram que a América Latina atingisse uma das maiores penetrações de internet sem fio do planeta. A população do Brasil, de 200 milhões de habitantes, responde por mais de 240 milhões de conexões de celulares, e isso leva o país a apresentar desempenho superior à média mundial em termos de penetração de aparelhos móveis. Também lhe confere a maior média de chips por usuário (no momento, dois para um). Esses fatores continuarão a influenciar positivamente o setor, e a penetração dos smartphones deve superar os 50% em 2018.

    REDES SOCIAIS

    Dado o acesso a celulares baratos, planos de dados baratos e um DNA muito sociável, os latinos provaram que são insaciáveis quanto ao uso de mídias sociais e serviços de mensagens. É bem sabido que São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires e Bogotá superam a cidade de Nova York em número de usuários e volume de uso de Facebook, Skype e WhatsApp. Além disso, os brasileiros dedicam em média 3,8 horas ao dia as redes sociais, ante 2,7 horas para os norte-americanos. Não admira que o "Wall Street Journal" tenha definido o Brasil como "capital universal das mídias sociais".

    ENTRADA DE INVESTIDORES

    O setor internacional de capital de risco ficou curioso com o potencial de uma classe média muito grande e crescente, e que tende a aderir cedo a novas tecnologias e a dedicar muito tempo à internet.

    Essa percepção foi reforçada ainda mais por alguns sucessos no mercado de capitais, começando em 2005. Em março daquele ano, o Submarino.com (que mais tarde se fundiria com a Americanas.com para se tornar a B2W Digital) lançou ações na Bovespa. E o grupo logo passou a ter companhia da TOTVS, que começou a ser negociada na Bolsa em março de 2006, e do MercadoLivre, que lançou ações na Nasdaq em agosto de 2007.

    Impressionado com a adoção e o uso de suas duas empresas, Kazaa e Skype, na América Latina, Niklas Zennstrom compreendeu rapidamente que havia muito a ganhar com o investimento na região, e em 2010 seu fundo, o Atomico, abriu um escritório em São Paulo.

    Em parte por conta desses desdobramentos, outras grandes companhias de capital para empreendimentos e capital privado, como Tiger Global Management, Insight Venture Partners, Riverwood Capital, Naspers, Rocket Internet e Accel Partners, ingressaram no mercado. Como disse recentemente Kevin Efrusy, da Accel Partners, "alguns de nós fomos ate lá e nos apaixonamos pelo mercado. Mergulhamos de cabeça e estamos empolgados a respeito".

    Pouco tempo depois, começaram a surgir fundos locais como o Monashees e o Kaszek, entre outros.

    Com esses ingredientes renovadores acrescidos ao mix, os países latino-americanos aceleraram o passo e hoje contam com 17 companhias de software/internet com valor superior a US$ 250 milhões.

    Metade dessas empresas foi criada já no novo milênio, e quase 40% delas nos últimos dez anos. Com isso, fica claro que estamos vendo um avanço no ritmo de criação e aceleração dessas empresas.

    Quase três quartos delas estão sediadas no Brasil e um quarto na Argentina. México e Colômbia contam cada qual com uma companhia na lista. Cinco delas realizaram ofertas públicas iniciais de ações: MercadoLivre (Nasdaq), B2W Digital (Bovespa), TOTVS (Bovespa), Globant (Bolsa de Valores de Nova York) e Linx (Bovespa).

    DESAFIOS

    Ainda resta muito a avançar. Há apenas quatro empresas iniciantes com avaliação superior a US$ 1 bilhão na América Latina, enquanto, para comparação, existem 87 desses unicórnios (como são chamados os negócios de capital fechado com valor superior a esse nível) nos Estados Unidos, oito dos quais em Nova York.

    Para estimular o ecossistema latino-americano e criar mais unicórnios, duas deficiências claras precisam ser sanadas rapidamente: é preciso mais capital inteligente e maior facilidade para os negócios.

    O fato de que os empreendedores locais estejam indo ao exterior para obter dinheiro deveria ser uma mensagem clara às empresas locais de investimentos. Além do Monashees (São Paulo) e do Kaszek(Montevidéu/Buenos Aires), não consigo identificar um fundo de capital para empreendimentos (não capital privado) na América Latina com mais de US$ 150 milhões sob administração.

    Compare essa situação à de Israel, onde existem pelo menos três fundos locais desse tipo com capital superior a US$ 1 bilhão. É compreensível, no entanto, que essas empresas internacionais estejam mais avançadas em sua curva de aprendizado sobre o investimento, porque operam no setor há mais tempo (ou seja, são mais competentes em escolher vencedores), e se sentem mais confortáveis com a equação de risco/perspectiva de ganho do que é o caso entre os participantes locais do mercado. Devemos esperar que isso mude rapidamente.

    De qualquer forma, é preciso definitivamente ficar de olho na Colômbia e na criação e execução do Fund of Funds do Bancoldex como meio de acelerar o influxo de capital inteligente para os países da Aliança do Pacífico (México, Colômbia, Chile e Peru, com população combinada de 206 milhões de pessoas e PIB de US$ 3,4 trilhões).

    O Bancoldex, banco estatal de desenvolvimento da Colômbia, está especificamente estabelecendo o primeiro fundo de fundos latino-americano com o objetivo de promover crescimento dinâmico, trazendo capital inteligente internacional para a região com foco nas companhias de rápido crescimento, e construindo um ecossistema de grupos locais e internacionais. O fundo antecipa contar com US$ 500 milhões sob administração, para mobilizar US$ 5 bilhões nos próximos dez anos.

    Enquanto Colômbia, Chile, Peru e México obtêm boa classificação no índice de Facilidade de Negócios do Banco Mundial, o Brasil, de longe a maior economia da região, com PIB de US$ 2,3 trilhões e população de 200 milhões de pessoas, uma vez mais obteve maus resultados nesse aspecto, ocupando o 120º lugar entre os 189 países do ranking (Cingapura detém o primeiro posto e a Eritreia, o último).

    Tributação pesada sobre as rendas e salários, combinada à abundante burocracia necessária para criar uma empresa (de seis a nove meses, a depender de a quem você perguntar) podem dissuadir muitos interessados.

    Um mundo globalizado requer que a América Latina tenha níveis fortes de inovação para gerar valor adicionado substancial para seus povos, e não depender exclusivamente de commodities de futuro incerto (por exemplo petróleo, carvão, produtos agrícolas). O impacto que o petróleo a preço inferior a US$ 60 por barril está tendo sobre a região é imenso, e por isso os governos e empreendedores da América Latina deveriam buscar um diferenciador competitivo capaz de gerar crescimento dinâmico não só para eles como para a região.

    Com mais de 17 companhias de internet/software avaliadas em US$ 250 milhões ou mais, muitas das quais desenvolvidas nos últimos quatro anos, a América Latina provou que está à altura da tarefa de competir nesse novo mundo 2.0. Precisamos garantir que não seja necessário esperar mais quatro Copas do Mundo para criar uma grande, valiosa e próspera economia digital.

    Omar Téllez é membro do grupo de conselheiros da Moovit e seu ex-presidente. Antes disso, ele estava entre os executivos que tornaram a abertura de capital da SNCR na Nasdaq o melhor IPO (oferta inicial de ações) de 2006. Ele vive na região da Grande Nova York e pode ser seguido em @ohtellez


    Este texto foi publicado originalmente no TechCrunch

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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