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    A revolução da realidade virtual está chegando

    LORNE MANLY
    DO "NEW YORK TIMES"

    25/11/2015 03h06

    A realidade virtual –que costumava ser coisa de ficção científica– ainda está na infância. Mas já existe uma corrida do ouro em relação à tecnologia, que arremessa os espectadores a um ambiente 3D e permite que explorem aquilo que os cerca como se realmente estivessem lá.

    Gigantes da tecnologia e do entretenimento estão apostando bilhões em que a realidade virtual será muito mais que uma moda passageira, e que revolucionará a maneira pela qual nos relacionamos com filmes, notícias, eventos esportivos, videogames e muito mais.

    Enquanto isso, cineastas e outros criadores estão tendo de encarar uma nova linguagem narrativa e de superar alguns desafios formidáveis –por exemplo os headsets claustrofóbicos que causam enjoos a algumas pessoas.

    A competição pelo domínio desse mercado vai começar a sério nos próximos meses, com a chegada de novos headsets de alta capacidade e preço acessível que serão lançados pela Samsung, Sony, HTC e Facebook (que no ano passado pagou US$ 2 bilhões por uma start-up de realidade virtual chamada Oculus VR).

    E Disney, Comcast, Time Warner e Legendary Entertainment são apenas algumas das empresas de entretenimento que estão colocando bilhões de dólares na louca corrida por criar conteúdo para essas máquinas. Em 2025, o mercado de conteúdo para realidade virtual será de US$ 5,4 bilhões, de acordo com o banco de investimento Piper Jaffray. O componente de hardware movimentará US$ 62 bilhões.

    "A era atual da realidade virtual é como a dos celulares do tamanho de um tijolo", disse Ted Schilowitz, futurista residente da 20th Century Fox. "A tecnologia funciona. É notável. Mas ainda não está nem perto de ser boa o bastante, em qualquer de seus aspectos, para conquistar adesão em massa".

    Mas, ele acrescentou, "a cada mês estamos nos aproximando mais da meta".

    Sem conteúdo de qualidade, mesmo a mais impressionante tecnologia não atrairá mais que alguns poucos consumidores experimentais. Uma das experiências mais visíveis quanto a preencher esse vazio está acontecendo no estúdio de Schilowitz, no qual o diretor Robert Stromberg ("Malévola"), Ridley Scott e o Fox Innovation Lab estão dando os toques finais em um complemento de realidade virtual para "O Marciano", grande sucesso de bilheteria dirigido por Scott.

    No filme de 15 a 20 minutos que será lançado no começo do ano que vem, os espectadores se tornarão o astronauta náufrago (interpretado no cinema por Matt Damon), e poderão percorrer o planeta e tentar realizar tarefas que os mantenham vivos. Poderão até experimentar a gravidade zero do espaço e dirigir o jipe espacial em Marte.

    Abaixo, alguns dos demais pioneiros do cinema, jornalismo, esportes e videogames falam do potencial e das dificuldades de criar do zero uma nova forma de arte.

    MELHOR QUE OS BASTIDORES
    Para o cineasta Mark Romanek ("Retratos de uma Obsessão", "Não Me Abandone Jamais"), a realidade virtual é uma fixação já antiga. Cerca de 25 anos atrás, ele experimentou um capacete de realidade virtual em uma convenção organizada pela revista "Mondo 2000", uma das primeiras publicações sobre cibercultura, e se decepcionou por o aparelho ser tão grande e tão desconfortável.

    Por isso, em 1991, quando estava dirigindo o vídeo da canção "Love Conquers All", do grupo pop britânico ABC, ele criou sua própria engenhoca para o mesmo fim. Cobriu uma máscara de mergulho com látex preto, juntou o produto a uma falsa luva interativa e desenvolveu um vídeo com 15 segundos de imagem de computação gráfica. "Fiz parecer realidade, se bem que a tecnologia ainda não estivesse disponível", ele afirma.

    No ano passado, a realidade virtual enfim conseguiu fazer jus à ficção, quando ele se envolveu em um projeto de realidade virtual com ninguém menos que Paul McCartney.

    Quando conversou com McCartney sobre uma colaboração em um curta musical, o assunto da realidade virtual logo surgiu. O ex-Beatle jamais havia visto imagens dos novos sistemas, e por isso Romanek pediu a amigos na Jaunt VR, companhia de cujo conselho consultivo ele faz parte, que montassem uma demonstração. McCartney ficou tão encantado que insistiu em que a companhia filmasse o show que ele faria no dia seguinte, no estádio Candlestick Park em San Francisco.

    Romanek, que estava na Europa no momento do show, sugeriu ângulos de câmera para a equipe da Jaunt VR via FaceTime, "Live and Let Die" foi capturada ao vivo em toda a sua glória, e em imagens de 360 graus. O espectador começa logo ao lado do piano de Sir Paul, e pode se virar para contemplar o resto do palco ou olhar para cima e encontrar um céu tomado por fogos de artifício. Momentos mais tarde, ele está na primeira fila; olhar "por sobre o ombro" permite vislumbrar a multidão de 70 mil espectadores.

    INVENTANDO NOVOS TRUQUES
    Como alunos do curso de cinema na Universidade Concordia, de Montreal, uma década atrás, Félix Lajeunesse e Paul Raphael estudaram as técnicas básicas do trabalho de um cineasta - a panorâmica, o zoom, o close-up fechado, o ângulo holandês.

    Agora, como cineastas de realidade virtual cujo estúdio, o Félix & Paul, criou trabalhos para o Cirque du Soleil, Universal Pictures e LeBron James, eles tiveram de abandonar, ou reformular, a maioria dessas técnicas.
    As pessoas que estão no interior de um universo de realidade virtual podem olhar em qualquer direção, uma liberdade inicialmente capaz de desorientar. Com isso, os cineastas precisam desenvolver novos truques que guiem seu olhar, o que na prática significa espalhar pistas sonoras, de imagem e de transição por seus filmes.

    "É como tocar notas musicais que não existiam até alguns anos atrás", disse Raphael.

    Em "Wild - The Experience", filme de realidade virtual com três minutos de duração que cimentou a posição da dupla como líderes da inovação, é o som que serve de guia. Baseado em "Livre", filme de 2014 sobre uma mulher que enfrenta seus pesares por meio de uma longa viagem a pé pela Pacific Crest National Scenic Trail, o espectador está sozinho em meio à natureza até que surge o personagem de Reese Witherspoon.

    Depois surge uma voz não identificada, que parece vir da direita. O espectador, com isso, se volta nessa direção e encontra Laura Dern, que interpreta a mãe do personagem de Witherspoon. Se você a mantiver em seu campo de visão pelo resto da experiência, ela o acompanhará. Mas se voltar o olhar na direção de Witherspoon, quando voltar a procurar por Dern ela já não estará lá.

    MANOBRA SUTIL
    "Não queríamos vê-la entrando na cena, ou colocá-la no quadro por meio de um corte", disse Raphael sobre o personagem de Dern. "Queríamos ocultar o corte de uma maneira que não se poderia fazer em um filme".

    Os cineastas aconselham evitar a tentação criada por um quadro com 360 graus de amplitude, e a não promover ação constante em todos os quadrantes da visão. Fazer com que o espectador se sinta centrado em seu ambiente, engendrar um senso de presença, é o mais importante. Além disso, uma câmera frenética, oscilante, especialmente quando esse movimento não está em sincronia com os movimentos de cabeça do espectador, pode causar náusea.

    "Em uma sala de cinema, uma experiência não muito boa quer dizer só um filme tedioso; uma experiência não muito boa em realidade virtual pode arruinar o resto da tarde do espectador", disse o cineasta Chris Milk, um dos líderes do setor, que trabalhou em diversos projetos de realidade virtual com o "New York Times".

    MÁQUINA DE EMPATIA
    Nonny de la Peña era correspondente da revista "Newsweek". Ela também trabalhou para o "Los Angeles Times", e foi documentarista.

    Mas nada em sua carreira como jornalista bastou para saciar a necessidade que a atraiu para a profissão em primeiro lugar: contar histórias que inspirassem as pessoas a se importarem de verdade com a desigualdade e os abusos dos direitos humanos. E então ela descobriu a realidade virtual.

    Seu primeiro projeto, "Hunger in Los Angeles" [fome em Los Angeles] explorava a insegurança alimentar, por meio de uma cena em uma organização religiosa que doa comida aos necessitados e está passando por dificuldades. Ela esperava originalmente capturar a experiência de uma mãe em fila para receber comida ao descobrir que a comida disponível acabou. Mas quando um estagiário gravou a fala comovente de um homem que sofreu um coma diabético enquanto esperava na fila, ela optou por contar a história dele, e de maneira nova.

    Usando US$ 700 de seu dinheiro pessoal, estudando como escrever códigos de computador e pedindo favores a amigos, ela dedicou dois anos a recriar a cena em uma experiência de realidade virtual com sete minutos de duração. "Hunger" combina animação computadorizada de pessoas e locais com sons reais, e permite que os espectadores se movimentem dentro da história, e até mesmo que se ajoelhem para tentar ajudar o homem adoecido (sem resultado).

    Em 2012, a produção causou estardalhaço no festival Sundance e foi selecionada para a mostra New Frontier. De la Peña desde então vem concentrando seu trabalho na realidade virtual, com projetos sobre a guerra na Síria e um imigrante espancado e atacado com armas de choque pela patrulha de fronteira dos Estados Unidos, o que causou sua morte.

    A teoria que embasa esse jornalismo de imersão, como a prática se tornou conhecida nos círculos acadêmicos e jornalísticos, é que a natureza visceral da experiência faz do espectador uma nova espécie de testemunha.
    "Você realmente se envolve com a cena, de uma maneira que oferece uma conexão incrível com o lugar em que você está", disse de la Peña. "E é por isso que, no começo, eu chamava a técnica de gerador de empatia, de máquina de empatia".

    De la Peña pode ter estado entre os primeiros jornalistas a trabalhar com realidade virtual, mas agora tem muita companhia. Organizações noticiosas como o "Wall Street Journal", as redes de televisão ABC e CNN, a Associated Press e a Vice, realizaram projetos de realidade virtual. O "New York Times" demonstrou seu compromisso para com essa mídia este mês, quando lançou um app de realidade virtual na estreia de "The Displaced", documentário de 11 minutos sobre a crise mundial dos refugiados produzido em parceria com a Vrse, a companhia de Milk.

    De la Peña acredita, porém, que as possibilidades envolvem também um risco jornalístico. "Tanto ou até mais que no caso de outras técnicas, essa mídia permite propaganda e mentiras", ela disse.
    O cineasta e seu tema muitas vezes têm relação mais simbiótica do que no jornalismo filmado tradicional, porque a logística técnica requer mais coordenação. E os espectadores, sentindo estar na cena a que estão assistindo, conferem à realidade virtual uma credibilidade que podem não conferir a outras mídias.

    "O que quer dizer transparência, quando seus olhos estão recobertos por um visor?", ela questiona. "Não sei a resposta, mas é algo sobre o que penso muito".

    PRIMEIRA FILA
    No final do mês passado, o Golden State Warrior, vencedor do mais recente título da NBA, abriu sua nova temporada na Oracle Arena em Oakland, Califórnia, que estava completamente lotada. A primeira fila estava ocupada pelos ricos e bem relacionados, que desembolsaram milhares de dólares pelos lugares mais cobiçados. E graças a uma descolada câmera de lente dupla, instalada no mesmo espaço, alguns torcedores antenados com as novas tecnologias puderam desfrutar do mesmo espetáculo sem sair de casa.

    Foi a primeira vez que um evento esportivo profissional foi transmitido ao vivo para todo o território dos Estados Unidos com um sistema de realidade virtual. E não era por acaso que o Warriors estivesse em quadra.
    Um dos coproprietários do time, o executivo de entretenimento Peter Guber, é grande investidor na NextVR, companhia de realidade virtual que filmou a partida de abertura.

    Ele, como o proprietário do Sacramento Kings, está apostando que os torcedores que gostam da experiência do esporte ao vivo, e os patrocinadores que desejam acesso a essa paixão, se disporão a pagar por isso. Que forma essas experiências virão a tomar - transmissões de jogos completos, pacotes de melhores momentos, assinatura ou pay per view - é algo que o tempo dirá.

    "Há inúmeras maneiras de misturar o caldo", diz Guber, que dirigiu a Sony Pictures e Polygram antes de criar sua empresa, a Mandalay Entertainment. "Eu acredito no potencial".
    O futuro lucrativo ainda não chegou, claro. As pessoas que estavam assistindo ao jogo dos Warriors em seus celulares enquanto usavam headsets de realidade virtual se queixavam de recepção interrompida, falta de placar, e de ocasional falta de sincronia entre som e imagem.

    Mas talvez o maior obstáculo a superar seja o headset desconfortável. A nova leva de aparelhos, embora os produtos certamente devam ser mais confortáveis, ainda não permitirá uso durante todo um evento esportivo - ou para longas sessões de videogame, outro mercado que companhias muito bem dotadas de recursos estão invadindo em grande número.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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