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    Vice

    O astro dos vídeos 'pornô de guerra' do YouTube

    CHRISTOPHER LOOF
    DA VICE

    26/11/2015 02h54

    A GoPro é a câmera mais popular dos Estados Unidos. Com ela é possível ver o mundo por meio dos olhos de outras pessoas: um paraquedista, um gato ou, caso você esteja interessado em tiros e sangue, um soldado em pleno combate.

    Assim como as câmeras mais primitivas eram comuns nos campos de batalha da Guerra da Crimeia, entre 1853 a 1856, a GoPro foi parar no Iraque e no Afeganistão. Acoplada aos capacetes e aos rifles dos soldados, a camerazinha tornou o combatente o principal narrador da guerra. Deu ao cidadão comum uma visão exclusiva do combate ao alcance de um clique no YouTube.

    Quando falei isso para T.M Gibbons-Neff, jornalista do Washington Post e ex-fuzileiro naval, ele me disse que eu estava romantizando algo que era, na verdade, muito mais simples. "'Pornô de guerra' seria o termo exato", ele disse.

    E se você está à procura de pornô de guerra, o Funker530 é o lugar ideal.

    O grupão virtual Funker530, uma suposta "comunidade de veteranos", é composto por um site e um canal do YouTube cheios de gravações em primeira pessoa de ataques aéreos, tiroteios e explosões de bombas caseiras.

    Um vídeo típico do Funker530 possui uma marca d'água e uma abertura tosca parecida com a abertura dos vídeos de lutas do site WorldStarHipHop. Armas carregadas por um cameraman misterioso ocupam a parte inferior da tela.

    A lente de 170 graus da GoPro cria uma leve distorção na imagem, também conhecida como "distorção em barril", que simula uma simbiose entre câmera e arma: você carrega a câmera e a arma, ela fotografa.

    Soldado corre em meio a tiroteio

    Esses vídeos são extremamente populares. Um deles, no qual o soldado americano que segura a câmera é baleado diversas vezes por insurgentes escondidos, já foi visto mais de 30 milhões de vezes.

    "Para alguém de fora, esse fenômeno deve parecer bem estranho", afirma Gibbons-Neff. "Mas para todos os caras do exército, que assistem a esses vídeos por que já tiveram experiências parecidas, isso não é nada impressionante."

    Em seguida, ele acrescentou: "Eu não sei qual é o efeito psicológico desses vídeos."

    É difícil dizer exatamente o que Scott Funk, presidente da Funker530, pensa sobre os impactos psicológicos desses vídeos. Ele quase nunca fala com repórteres. Ignorou todos meus e-mails e ligações e, quando finalmente consegui falar com ele no número de outra empresa, ele disse apenas "sim" antes de desligar e recusar todas as ligações seguintes.

    No entanto, a popularidade desses vídeos sugere um possível efeito terapêutico. O Funker530 explora a narrativa do trauma que define a experiência do veterano moderno –o humano preso em uma guerra mesmo depois de deixar o campo de batalha e que se sente deslocado no mundo real.

    Em um ensaio intitulado "Você Não está Sozinho", "Josh", um colaborador do Funker530, dialoga com o arquétipo do veterano traumatizado:

    "Você cumpriu sua obrigação e agora só lhe restam perguntas. Como cheguei aqui? Por que essa dificuldade de fazer qualquer coisa, se já fui capaz de tanto? Por que estou no fundo do poço? Um pagamento se mescla ao próximo. Seu dia começas às seis e termina às seis –lavar, enxugar, repetir.

    Nada te satisfaz; é como se sua vida estivesse em suspensão. Em frente ao espelho, você olha para seus olhos desolados em busca de sua própria alma e pergunta: "O que aconteceu comigo? O que há de errado comigo? Por que sinto que a minha vida é como o final de 'Rambo: Programado Para Matar'? Por que estou deitado no chão relembrando cada momento infeliz da minha vida?"

    O fácil acesso a esses vídeos evoca um dos principais métodos de tratamento para a síndrome do stress pós-traumático. Na terapia de EP (exposição prolongada), os pacientes recriam metodicamente seus traumas num ambiente controlado e, ao longo da terapia, destroem a associação entre o trauma e reação nociva.

    Alguns psicólogos usam simuladores de realidade virtual em tratamentos de EP. Eles remodelam digitalmente as cenas de combate vividas por veteranos traumatizados. O Funker530 patrocina um site de conscientização sobre o TEPT, o Military Minds. Mas será que os vídeos do Funker530 ajudam a curar os traumas desses veteranos?
    Dois dos maiores especialistas em TEPT possuem opiniões divergentes, o que confirma a natureza controversa desses vídeos.

    Rachel Yehuda, uma neurocientsta israelense do Hospital Monte Sinai, disse que os vídeos podem ser uma boa ferramenta; servem, diz, como uma oportunidade de esses veteranos se introduzirem na terapia de EP sozinhos.

    "Se os vídeos fazem você se sentir melhor, você pode descobrir que existem vários tratamentos psicológicos que se baseiam na exposição e você pode procurar um deles", ela disse. "Especialmente se esses vídeos não solucionaram completamente seu trauma."

    Yehuda avisa, no entanto, que essas imagens podem piorar o trauma de alguns pacientes e que a orientação de um médico é sempre bem vinda. "Defendo a liberdade de escolha e isso inclui a multiplicidade de escolhas, especialmente considerando que nem todas vítimas de TEPT respondem às mesmas terapias."

    No final, Yehuda acredita que, desde que os veteranos tomem cuidado com a mídia que consomem, os vídeos de pessoas atirando em outras podem trazer alguns benefícios.

    Emboscada no Afeganistão

    Mas a psicóloga que inventou a terapia de EP e revolucionou a tratamento do TEPT discorda. Edna Foa, professora israelense da Universidade da Pensilvânia que criou a abordagem nos anos 70, disse que, embora os vídeos imersivos do Funker530 tenham algumas semelhanças com a terapia de EP, eles são apenas superficiais; os vídeos não oferecem nenhum benefício clínico, afirma, porque os pacientes da terapia de EP têm que reviver suas memórias traumáticas na presença de um profissional.

    "Essa experiência está fora do nosso controle. Eles podem ver um vídeo de cada vez, passando pela experiência incômoda sem saber como aproveitá-la", ela disse, referindo-se às medidas de seguranças que os psicólogos empregam.

    Sugeri a Foa que o combate pode representar algo além de horror e trauma. Muitos desses veteranos têm memórias positivas do combate. Nas palavras de Yehuda em uma entrevista para a Vanity Fair, "essa é a coisa mais importante que alguém pode fazer durante sua vida –especialmente considerando que essas pessoas são muito novas quando elas entram no exército– afinal, é a primeira vez que eles ficam completamente livres das amarras sociais. É lógico que elas irão sentir falta de fazer parte desse mundo tão importante."

    Foa não concorda. "Não estamos falando sobre imagens de um museu em Bagdá ou uma linda foto de um rio. Estamos falando sobre cenas de um combate real", disse. "Estamos falando sobre situações horríveis e negativas. Então, como psicóloga e como ser humano, não vejo esse benefício... Esses vídeos me lembram as pessoas sentadas por horas na frente da TV assistindo à queda do World Trade Center. Não sei como isso ajudaria."

    É claro que existem diversas razões para assistir a esses vídeos. Gibbons-Neff diz que ele assistia a essas mídias quando se cansava de estudar história chinesa em Georgetown, por exemplo.

    Funk deu uma entrevista para o "Washington Post" em 2013, com a condição de que sua identidade fosse mantida em sigilo por questões de segurança. É fácil compreender sua timidez. Em um comentário no Reddit, o usuário FunkerFiveThreeZero, que afirma ter servido no exército canadense no Afeganistão, narra sua súbita fama após a postagem de seu vídeo mais famoso, que hoje conta com 30 milhões de visualizações.

    Preocupado com a atenção da mídia, ele deu uma só entrevista para a ABC News com a condição de que a reportagem focasse em sua instituição de apoio a veteranos com TEPT. Em vez disso, ele foi bombardeado com perguntas agressivas. A matéria nunca foi ao ar.

    Paulo Rubio, que já comandou outro site, o Funker Tactical Media, em parceria com Funk, disse em um e-mail que eles terminaram a parceria no ano passado graças a um desentendimento sobre "monetizar imagens de combate e usar essa popularidade para ganhar dinheiro de corporações".

    Greg Jaffe, jornalista do "Washington Post", estimou em 2013 que um canal do YouTube com a popularidade do Funker530 poderia lucrar até US$150.000 por ano, quantia consistente com os números da VidIQ, uma ferramenta de análise de alcance que sugere que um vídeo com um milhão de visualizações vale cerca de US$1585. O canal do Funker530 tem 353 vídeos publicados, somando ao todo cerca de 278 milhões de visualizações.

    Gibbons-Neff não condena Funk por usar esses vídeos para ganhar uma grana. "É claro que eles comercializam imagens que são muito incômodas para o espectador comum, mas acho que isso ajuda os caras que assistem a esse tipo de coisa extravasar", ele disse.

    Mas, independentemente do bem que eles fazem, esses vídeos ainda são incompletos; a maioria das gravações tem só alguns minutos de duração, o que limita sua capacidade de transmitir algo além da tensão do combate, quando a guerra é, na realidade, composta por várias experiências diferentes.

    Como disse Gibbons-Neff, "eles estão perdendo 99% da experiência: a patrulha com 40 quilos nas costas, os oito minutos que você passou sendo atacado numa emboscada, tudo isso sem uma gota de água.. É. Você perde tudo isso."

    O fato duma parte tão pequena da experiência do combate ser retratada de modo tão vívido cria uma imagem errada da guerra, diz Alex Horton, veterano do exército e escritor freelancer especializado em questões de segurança nacional. "Você basicamente apaga todo o resto", diz.

    "E isso reforça a ideia de que quando você sai do avião, você é recebido com balas, e você não para de atirar até entrar de novo no avião. O que não é o caso, é claro."
    Os vídeos oferecem uma visão autoritária da guerra ou pelo menos de seus momentos mais climáticos e emocionantes, por razões tanto econômicas - em especial a economia da atenção do espectador - quanto políticas.

    O autor de um desses vídeos, o "Soldados Americanos Eliminam Três Rebeldes Durante Emboscada", mandou uma mensagem para o Funker530:

    "Quis compartilhar esse vídeo com o mundo porque estava cansado de ouvir tanta coisa ignorante sobre o que estamos fazendo por aqui. As pessoas precisam entender como é estar no campo de batalha e ver com o que lidamos diariamente, sem nenhuma mensagem política envolvida. Esse vídeo foi editado para retirar as cenas explícitas das mortes dos inimigos."

    A figura do soldado-fotógrafo indica que a verossimilhança oferecida pelo formato da GoPro permite que o espectador transcenda as limitações características da cobertura tradicional desses incidentes.

    Algo que fica muito claro, porém, é que remover a imagem do inimigo morto é uma forma de mediação, mesmo quando essa remoção ocorre em nome de algo como o senso comum. O próprio Funk disse em um post no Reddit que "mostrar imagens detalhadas de combatentes inimigos feridos ou mortos é uma violação do código militar e prefiro manter minha boa reputação."

    A despeito de seu comprometimento comum - pelo menos em teoria - com a saúde mental, Funk não tem uma boa reputação com Edna Foa, pioneira da terapia de exposição prolongada. "Isso me enoja", ela diz. "Afirmar que esses vídeos são úteis sem nenhum estudo?

    Não divulguei a terapia de EP até ter feito vários estudos que mostrassem que ela realmente funciona. Quer dizer, vender esses vídeos dizendo que eles são para o bem ", ela disse, perdendo sua linha de raciocínio por alguns segundos antes de se recompor.
    "Isso é doentio."

    Tradução: Ananda Pieratti

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