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    Briga de Apple e FBI mostra batalha de empresas contra vigilância

    FARHAD MANJOO
    DO "NEW YORK TIMES"

    19/02/2016 10h20

    A batalha entre a Apple e as autoridades judiciais e polícia dos Estados Unidos sobre o desbloqueio do smartphone de um terrorista é a culminação de uma lenta virada de posição entre o setor de tecnologia e o governo dos Estados Unidos.

    Depois das revelações de Edward Snowden, antigo prestador de serviços à Agência Nacional de Segurança (NSA) norte-americana, de que o governo tanto mantinha relacionamento aconchegante com certas empresas de tecnologia quando invadia as redes de outras delas a fim de conquistar acesso a dados privados em escala enorme, os gigantes da tecnologia começaram a encarar o governo dos Estados Unidos como agente hostil.

    Mas se o confronto se cristalizou nessa mais recente batalha, ele talvez já esteja a caminho de uma conclusão previsível: em longo prazo, as companhias de tecnologia estão destinadas a emergir vitoriosas.

    No momento, pode não parecer que seja esse o caso. De um lado, temos o poderoso aparelho judicial e de segurança do governo dos Estados Unidos lutando por acesso a dados do tipo que mais desperta simpatia de parte do público quanto a esse tipo de solicitação: os segredos sepultados no telefone de um homicida múltiplo.

    As ações derivam de uma liminar expedida na terça-feira por um tribunal federal norte-americano, dispondo que a Apple ajude o FBI a desbloquear um iPhone usado por um dos dois atacantes responsáveis pela morte de 14 pessoas em San Bernardino, Califórnia, em dezembro.

    No canto oposto está a companhia de mais alto valor de mercado no planeta, cujo presidente-executivo, Tim Cook, anunciou que recorrerá contra a liminar. A Apple argumenta que está lutando para preservar um princípio que a maioria de nós, viciados em usar smartphones, defenderia: se um único iPhone tiver seu sistema de proteção enfraquecido para que o governo dos Estados Unidos ganhe acesso aos dados que ele abriga, surgirá o risco de que todos os iPhones tenham enfraquecida sua proteção contra qualquer intruso governamental, não importa onde.

    Kimihiro Hoshino/AFP
    (FILES): This October 23, 2012 file photo shows Apple CEO Tim Cook addressing an Apple special event at the California Theatre in San Jose, California. Apple chief Tim Cook slammed what he called a wave of "dangerous" laws in several US states that he said promote discrimination and erode equality, in an editorial published March 29, 2015. Cook -- one of the most prominent chief executives to publicly acknowledge his homosexuality -- wrote in the Washington Post that so-called "religious freedom" laws passed in several states threaten to undo progress toward greater equality. AFP PHOTO / Files / Kimihiro Hoshino ORG XMIT: KH25
    O diretor-executivo da Apple, Tim Cook, se posicionou contra entregar dados a autoridades

    Provavelmente haverá meses de disputa judicial, e não está de forma alguma claro quem sairá vitorioso no tribunal, e tampouco na batalha pela opinião pública e pela simpatia do Legislativo.
    Mas a dinâmica que embasa tudo isso é simples: Apple, Google, Facebook e outras empresas têm as melhores cartas em suas mãos, nesse confronto. Elas controlam os nossos dados, e seus negócios dependem da crença coletiva do público mundial em que farão tudo que puderem para protegê-los.

    Qualquer fissura nessa fachada poderia ser fatal para as empresas de tecnologia, que precisam operar em escala mundial. Se a Apple se vir forçada a abrir acesso a um iPhone para uma investigação das autoridades dos Estados Unidos, o que a impediria de agir da mesma forma a pedido das autoridades da China ou do Irã? Se a Apple for forçada a criar códigos que permitam que o FBI ganhe acesso ao iPhone 5c usado por Syed Rizwan Farook, o homem que atacou colegas em San Bernardino, quem seria responsabilizado caso um hacker obtivesse esses mesmos códigos e o usasse para invadir outros aparelhos?

    A postura da Apple quanto a essas questões emergiu pós-Snowden, quando a companhia começou a adotar uma série de tecnologias que resultam em uso automático de dados cifrados a fim de limitar o acesso a informações de usuários. Mais que isso, a Apple –e, de formas diferentes, outras companhias, entre as quais Google, Facebook, Twitter e Microsoft– fizeram de sua oposição às reivindicações governamentais uma questão de princípio.

    A marca mundial que está emergindo para a Apple é a da privacidade; a empresa apostou sua reputação, para não mencionar o investimento de seus consideráveis recursos técnicos e financeiros, em limitar o tipo de vigilância em massa que foi descoberto e exposto por Snowden. Por isso, para muitos casos envolvendo intrusão governamental em dados pessoais, os defensores da privacidade, que no passado combatiam solitários, agora estão lutando ao lado da companhia mais poderosa do planeta.

    "Um ponto de comparação são as batalhas quanto a dados cifrados nos anos 1990", disse Kurt Opsahl, diretor jurídico da Electronic Freedom Foundation, uma organização de proteção à privacidade. "Na época havia algumas poucas empresas envolvidas mas não uma das maiores companhias do mundo saindo em público com um post longo e apaixonado como o de Tim Cook que vimos ontem. Temos definitivamente um perfil mais visível, hoje."

    A Apple e outras empresas de tecnologia têm outra carta na manga: os meios técnicos para continuar a tornar seus aparelhos menos e menos acessíveis. Basta perceber que a oposição pública da Apple à solicitação do governo já é por si só um obstáculo à intrusão maciça da parte das autoridades.

    E para obter o conteúdo de um único celular, o governo afirma necessitar de uma liminar judicial e da ajuda da Apple para desenvolver software; em versões anteriores do iPhone, criadas antes que a Apple tivesse se convertido em defensora ferrenha da privacidade, o FBI talvez tenha sido capaz de obter acesso ao conteúdo do aparelho sem ajuda.

    Pode-se esperar que as medidas de proteção continuem a ser apertadas. Os especialistas dizem que, quer a Apple saia derrotada nesse caso específico, quer não, as medidas que a empresa poderia adotar no futuro certamente limitariam ainda mais o alcance do governo.

    Isso não equivale a dizer que no desfecho do caso de San Bernardino seja insignificante. Como argumentaram a Apple e diversos especialistas em segurança, uma liminar que ordene que a Apple crie software para dar ao FBI acesso ao iPhone criaria um precedente perturbador.

    A liminar na prática é uma ordem para que a Apple aja como hacker contra seus próprios aparelhos e, quando estiver em vigor, o precedente poderia ser usado para justificar os esforços das autoridades para contornar as tecnologias de cifração de dados também em outras investigações, muito distantes de qualquer ameaça à segurança nacional.

    Assim que estiver armado de um método para ganhar acesso aos iPhones, o governo poderia pedir para usá-lo de forma pró-ativa, antes de um possível ataque terrorista –o que colocaria a Apple em uma enrascada quanto a atender o pedido ou correr o risco de um pesadelo de relações públicas caso um ataque viesse mesmo a ocorrer.

    "Essa é uma nova ofensiva na guerra contra os dados cifrados", disse Opsahl. "Houve muitos debates no Congresso e na mídia sobre abrir uma porta dos fundos ao governo ou não, e essa manobra é um esforço para contornar esses debates - eles aparecem com uma liminar que ordena a criação da tal porta dos fundos".

    Mas vale a pena ressaltar que mesmo que a Apple termine derrotada no caso, ela conta com meios consideráveis para fechar essa porta dos fundos, com o tempo.

    "Se eles contarem com o talento de engenharia que deveriam ter, aposto que já estão repensando seu modelo de ameaças", disse Jonathan Zdziarski, especialista forense em questões digitais que estuda o iPhone e suas vulnerabilidades.

    Uma solução relativamente simples, disse Zdziarski, seria que a Apple modificasse versões futuras do iPhone para garantir que o usuários aceite por meio de senha a introdução do sistema operacional modificado que o FBI deseja que a Apple crie. Dessa forma, a Apple não poderia introduzir unilateralmente software que enfraqueça o iPhone. O usuário teria de consentir, para tanto.

    "Nada é 100% garantido contra hackers", disse Zdziarski, mas apontou que a liminar do caso em questão requeria que a Apple oferecesse "assistência de segurança razoável" ao desbloqueio do celular de Farook.

    Se a Apple alterar o modelo de segurança de futuros iPhones para que nem mesmo a "assistência razoável" de seus engenheiros consiga abrir um dado aparelho a acesso quando o governo assim requer, o precedente estabelecido pelo caso poderia deixar de ser duradouro.

    Em outras palavras, mesmo que o FBI vença esse caso, em longo prazo sairá derrotado.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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