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    Após massacre, bandeira confederada é questionada até em museus nos EUA

    SHERYL GAY STOLBERG
    DO "NEW YORK TIMES", EM RICHMOND

    08/07/2015 07h00

    Khue Bui/The New York Times
    Turista observa bandeira confederada em exposição no Museu Confederado de Richmond
    Turista observa bandeira confederada em exposição no Museu Confederado de Richmond

    Um piso abaixo do térreo no Museu Confederado de Richmond, ao final de um corredor com paredes de blocos de concreto e por trás de dois conjuntos de portas trancadas, uma câmara de temperatura controlada abriga a maior coleção mundial de um dos mais reverenciados e repudiados objetos na história dos Estados Unidos: bandeiras da era confederada.

    Aqui, catalogadas e preservadas minuciosamente, há mais de 550 bandeiras da era da guerra, confeccionadas em seda, lã e algodão. Uma delas, feita com um vestido de noiva, tem a palavra "lar" bordada em azul e cercada por estrelas azuis. Outra mostra uma imagem de Pocahontas, pintada em óleo. Ainda outra, a bandeira de batalha da confederação, com sua diagonal azul de estrelas brancas sobre fundo vermelho, que vem causando tanta controvérsia, foi um dia propriedade de Tad Lincoln, o filho do presidente do país na época da guerra civil. Ela está exposta em uma das galerias nos pisos superiores.

    Como historiador-chefe do museu e autor de um livro erudito sobre a bandeira, John Coski, 56, um sujeito esbelto e de aparência um tantinho amarfanhada, trabalha com afinco para lançar luz sobre suas diferentes versões, parte do que ele define como "esforço consciente" da parte dos dirigentes da instituição, criada 119 anos atrás, para modernizá-la e transformá-la "de um templo" que celebra o velho sul em um "museu moderno, como o Smithsonian".

    Enquanto rola o debate sobre onde exibir bandeiras confederadas –a Assembleia Geral da Carolina do Sul começou a tratar da questão na segunda-feira (6)–, os críticos insistem em que elas deveriam ser relegadas aos museus. Mas na Virgínia, fica bem claro que nem mesmo os museus conseguem escapar da controvérsia.

    "Eles gostam de esconder suas bandeiras no porão", diz Grayson Jennings, fundador da organização Virginia Flaggers, cujos membros recentemente protestaram carregando versões modernas da bandeira de batalha contra a decisão do Museu de Belas Artes da Virgínia que, em 2011, removeu a bandeira de uma capela confederada localizada em seu terreno.

    Sobre o Museu da Confederação, Jennings diz que "a maioria de nós, sulistas de verdade, deixou de ser sócio já há alguns anos".

    Richmond, afinal, era a capital da confederação; o museu fica adjacente a, e abarca, a grandiosa Casa Branca confederada, uma mansão com colunas na fachada onde vivia o presidente confederado Jefferson Davis. Jennings e outros defensores da bandeira objetam à fusão entre o museu e o Centro da Guerra Civil Americana, muito mais novo, inaugurado em 2006 à beira do rio James, no local ocupado pela Tredegar Iron Works, a principal fabricante de canhões e artilharia da confederação.

    O centro conta a história daquilo que os sulistas da velha escola chamam de "guerra entre os Estados" –do ponto de vista unionista, confederado e dos negros. Quando ele estava sendo planejado, segundo H. Alexander Wise Jr., seu presidente, houve uma discussão quanto a uma possível fusão com o Museu da Confederação, que tem uma vasta coleção de artefatos, muitos deles recolhidos por mulheres que solicitaram objetos históricos às suas famílias. A coleção inclui uniformes contendo furos de balas, cartas frágeis e a espada que o general Robert Lee portava no dia da rendição confederada em Appomattox, em 1865.

    Khue Bui/The New York Times
    Cathy Wright, curadora do museu, e John Coski, historiador, no acervo do Museu Confederado de Richmond
    Cathy Wright, curadora do museu, e John Coski, historiador, no acervo do Museu Confederado de Richmond

    "Mas chegou o ponto em que eles desejavam editar e controlar a história", diz Wise, que já foi membro do conselho do Museu da Confederação e diretor do departamento de preservação histórica da Virgínia. "E nós dissemos 'Nada disso, a história que temos a contar se sobrepõe a tudo'".

    Mas diante da insistência de filantropos locais, as duas instituições chegaram a um acordo e agora operam, no papel e na Internet, como Museu da Guerra Civil Americana. Em 2017, um novo pavilhão conjunto de exposições será inaugurado no local da antiga usina de Tredegar.

    B. Frank Earnest, que no passado foi comandante da organização Filhos de Veteranos Confederados em sua divisão da Virgínia, não se conforma.

    "Tudo que existe naquele museu foi doado por pessoas que descendem de soldados confederados", disse Earnest. "As pessoas doaram seus objetos acreditando que o museu seria um memorial da Confederação, do soldado confederado e da causa pela qual ele lutou".

    Mas os novos tempos –e a queda de público– exigem novas ideias, dizem dirigentes do museu. Ed Ayers, historiador da guerra civil, reitor emérito da Universidade de Richmond e presidente do conselho do novo museu, argumenta que o esforço conjunto revelará "o poder e o mistério da guerra" e resultará em maior compreensão.

    "Sem essa compreensão", ele disse, "nos veremos perpetuamente confusos e em disputa, como vivemos nos últimos 150 anos e continuamos a viver hoje".

    O projeto (que tecnicamente é uma "consolidação" e não uma fusão) tem dois presidentes-executivos: Christy Coleman, 50, negra, a especialista em museus que comandava o Centro da Guerra Civil; e S. Waite Rawls, 66, executivo financeiro aposentado, branco e descendente de soldados confederados, que comandava o Museu da Confederação. Os dois já enfrentaram a ira de doadores, e ambos conhecem bem as questões duras que cercam a bandeira.

    "As pessoas me perguntam por que não temos a bandeira confederada em exibição, e eu pergunto qual delas", diz Coleman. "Estamos falando daquela que tem Pocahontas ou da que tem estrelas brancas e azuis e a palavra 'lar'?"

    Quando o Museu da Confederação criou um espaço de exibição em Appomattox, em 2012, com a espada de Lee como peça central, Rawls foi criticado porque o pavilhão desfraldava as bandeiras dos Estados confederados individuais mas não a bandeira de batalha quadrada com a diagonal de estrelas que o Exército do Norte da Virgínia, comandado por Lee, carregava em combate, ou a bandeira retangular que era desfraldada pelo Exército do Tennessee –ambas divisivas, símbolos do racismo ou do orgulho sulista, a depender do ponto de vista de cada pessoa sobre a história.

    "Eles se ocultam por trás da primeira bandeira nacional", diz Jennings, se referindo à chamada "estrelas e barras", adotada em 1861 pelo governo confederado e vagamente baseada na bandeira da União, que traz estrelas e listras. "Têm medo da bandeira de batalha".

    Os visitantes do museu, no centro de Richmond, são recebidos na entrada por uma versão estilizada de uma bandeira diferente, aquela que era desfraldada no quartel-general de Lee. Mas nas silenciosas galerias do segundo piso, oito bandeiras de batalha puídas, com o padrão diagonal de estrelas, capturadas na batalha de Gettysburg 152 anos atrás, estão expostas em molduras de preservação especialmente construídas.

    "Quando as pessoas veem a bandeira, é aquilo que elas entendem como a bandeira confederada", diz Cathy Wright, a curadora do setor. "Mas queríamos explicar que na realidade existia grande variedade de padrões e designs".

    Para isso, a galeria seguinte exibe uma bandeira feita com um xale vermelho tinto, dotado de franjas. Lá também estão em exposição amostras do que Coski define como "kitsch interminável" –uma revista em quadrinhos que mostra uma mulher negra vestindo um uniforme com a bandeira confederada; um par de calções com a bandeira; uma foto da drag queen Ru Paul usando um vestido longo com o desenho da bandeira.

    Em seu livro "The Confederate Battle Flag: America's Most Embattled Emblem" (a batalha da bandeira confederada: o emblema mais conturbado da América), de 2006, Coski traça a evolução da bandeira confederada e seus diferentes significados para diferentes pessoas. Com a erosão do apoio político à sua presença, depois do massacre contra os fiéis de uma igreja negra na Carolina do Sul, ele e o livro estão em demanda. A loja do museu esgotou seu estoque na semana passada, e em dado momento a Amazon informava que o livro estava "temporariamente esgotado".

    O estudioso diz, com sua voz mansa, que está "consciente de que uma tragédia horrível serve como ocasião" para que o trabalho de sua vida seja "descoberto e revelado", e considera o fato como "causa de reflexão". Quanto ao candente debate sobre a bandeira, ele o vê como "um marco importante", mas um entre muitos, e não acredita que a questão venha a ser decidida logo.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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