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    Antigo paraíso de surfistas, ilha francesa está repleta de tubarões

    MARC SANTORA
    DO "NEW YORK TIMES", EM ST.-LEU, REUNIÃO

    03/09/2015 02h00

    "Ver a onda perfeita e não poder surfar", disse Nicolas Dantec, meneando a cabeça, "é terrível".

    Dantec realizou um sonho de infância quando se mudou para Reunião, uma ilha francesa no Oceano Índico que até recentemente era mais conhecida em todo o mundo como um paraíso para os surfistas. Ele comprou uma casa em uma colina com vista para a praia de St.-Leu, na costa oeste da ilha.

    "Quando eu era menino, tinha um pôster que mostrava esse lugar", disse Dantec, 39, originário da França, enquanto contemplava as ondas subindo e quebrando, ao longe. "Sonhava com vir para cá e surfar essas ondas".

    Mas já faz quase quatro anos que ele não pode mais fazê-lo, e hoje em dia, quando ele se senta na varanda de sua casa, prefere ficar de costas para o mar.

    O problema são os tubarões. A ilha está sitiada por eles, e pelo menos 18 pessoas foram atacadas, e sete mortas, desde 2011.

    Richard Bouhet - 12.abr.2015/AFP
    Flores colocadas na praia Les Aigrettes, na costa da ilha de Reunião, onde um menino de 13 anos foi morto por um ataque de tubarões
    Flores na praia Les Aigrettes, em Reunião, onde um menino de 13 anos foi morto por ataque de tubarões

    O governo respondeu em 2013 com uma controvertida proibição ao surfe e natação em quase todas as praias da ilha, o que faz de Reunião provavelmente a única ilha turística do planeta que ordena aos moradores e visitantes ficar fora da água.

    O oceano encontrou outra maneira de colocar Reunião nas manchetes, no final do ano passado, quando um pedaço de asa de avião foi encontrado em uma praia. Acredita-se que ele seja parte de um Boeing 777 da Malaysia Airlines desaparecido misteriosamente em março de 2015, com 239 pessoas a bordo. A descoberta levou membros das forças armadas francesas e moradores locais a vasculhar as costas da ilha em busca de outros destroços do avião que possam ter sido trazidos pelas ondas.

    O frenesi na costa, com voluntários ainda conduzindo buscas na praias, não deve mudar o frenesi quanto ao que fazer sobre os tubarões. Eles continuam a ser o foco de um debate acalorado entre ambientalistas, ecologistas, defensores dos direitos dos animais e autoridades governamentais em Paris, sobre como voltar a tornar as praias da ilha seguras para a recreação.

    Muita gente em Reunião, que é governada como um departamento ultramarino da França, acredita que se problema semelhante estivesse acontecendo na costa mediterrânea da França, o governo se esforçaria bem mais para resolvê-lo.

    Em lugar disso, o que aconteceu na ilha foi a proibição, que segundo eles é uma medida extrema com o objetivo de evitar má publicidade, em lugar de resolver o problema subjacente. E o problema definitivamente não está resolvido: os surfistas mais apaixonados se recusam a ficar fora da água, e os tubarões continuam a atacá-los.

    Quando um surfista chamado Elio Canetri, 13, desafiou a proibição e foi morto, em abril, sua morte causou choque especialmente forte. O nome de Elio agora está pichado em paredes, bancos e placas de rua em muitas cidades de praia da ilha.

    Jeremy Flores, surfista profissional de Reunião, resumiu bem o clima em um post no Instagram.

    "Novo ataque de tubarão na ilha de Reunião nesta manhã", ele comentou em um comentário sobre uma foto de Elio. "Não há palavras para descrever como estou triste e zangado. Tão moço!!! Notícia dolorosa".

    A morte do adolescente renovou as questões sobre o que está por trás dos ataques de tubarões e se as autoridades estão fazendo o bastante para remediar a situação. Não faltam teorias.

    Algumas pessoas atribuem a responsabilidade pelos ataques à pesca excessiva nas águas em torno de Reunião, que teria devastado o suprimento natural de comida dos tubarões e os forçado a caçar mais perto da costa.

    Outros dizem que há mais tubarões perto da ilha porque o governo proibiu a venda de carne de tubarão - e portanto a pesca de tubarões - nos anos 90, ou porque uma reserva natural marinha foi estabelecida ao longo da costa perto de St.-Leu, em 2007.

    Já que há pouca gente na água, alguns argumentam, os seres humanos se tornaram presas mais fáceis para os predadores.

    Ainda outros mencionam uma mudança perceptível na população de tubarões. Os tubarões de recife estão sendo suplantados por tubarões-touro, maiores e mais agressivos, afirmam essas pessoas, sinalizando uma distorção na ecologia marinha.

    Nathalie Verlinden, bióloga marinha radicada em Réunion que ajudou o Discovery Channel a produzir um documentário sobre o problema dos tubarões, apontou que a geografia de Reunião também influencia a situação.

    A ilha é vulcânica e tem encostas íngremes, com a montanha mais alta atingindo um pico de cerca de três mil metros acima do mar. Os deslizamentos causados por tempestades, que arrastam para o mar lama, lodo e outros detritos deixados pela crescente população de cerca de 850 mil pessoas, criam o tipo de ambiente aquático nebuloso que os tubarões-touro preferem. E o piso do oceano também decai de maneira íngreme em torno da ilha, o que significa que existem águas muito profundas a distância bem curta da costa.

    Qualquer que seja a causa, as consequências são claras. Cerca de 405 mil visitantes vieram a Reunião no ano passado, 14% a menos do que os 471 mil turistas de 2011.

    A ilha é exótica, bruta. Seu interior, boa parte do qual classificado pela Unesco como parte de sua lista de patrimônio histórico da humanidade, é no geral despovoado e dominado por florestas densas, vales de recorte profundo e rios de águas rápidas.

    A maioria da população vive nas pequenas e grandes cidades que circundam a costa, conectadas por uma rodovia que contorna a ilha. Por muitos quilômetros, a estrada é ladeada por encostas íngremes, e a ameaça de deslizamentos de pedras lançadas sobre os carros conduziu a um projeto de infraestrutura definido pela mídia local como "a estrada mais cara da França".

    As autoridades estão construindo um trecho de 13 quilômetros de via expressa - uma via de rodagem posicionada sobre pilastras fincadas no mar, e assim longe das encostas - para ligar a capital, St.-Denis ao porto de Reunião, com custo estimado em quase US$ 2 bilhões. Muita gente na ilha gostaria de ver nem que uma fração desse dinheiro gasta no combate ao problema dos tubarões, conhecido a ponto de levar vendedores locais a criar uma camiseta que mostra um tubarão devorando a ilha.

    "Quando visitei a França recentemente, as pessoas me perguntavam como era viver na Ilha do Tubarão", conta Verlinden.

    Mick Asprey, 67, visitou Réunion pela primeira vez em 1972, e se mudou da Austrália para a ilha pouco depois. Como veterano proprietário de uma pequena loja de produtos para surfe a dois quarteirões da praia de St.-Leu, ele produziu pranchas para gerações de moradores. E não economiza palavras sobre o que acredita precise ser feito: matar os tubarões-touro.

    "Eu defendo eliminar uma espécie que não é parte nativa do meio ambiente da ilha", ele diz.

    Em sua opinião, uma combinação de fatores trouxe a horda de tubarões-touro para as águas da ilha, nenhum deles natural e todos corrigíveis, se houver determinação. Mas "simplesmente não existe interesse suficiente no que acontece aqui", ele afirmou.

    Imagine os protestos "se isso acontecesse em Sydney e cinco pessoas fossem atacadas nos primeiros cinco meses do ano".

    Antes do ataque que matou Elio, disse Asprey, as pessoas estavam começando a se cansar da proibição e retornando à água, e os negócios em sua loja começaram a se recuperar. Asprey disse ter faturado quatro vezes mais na estação de festas de 2014 do que na do ano anterior.

    Mas em seguida Elio foi morto e outro surfista teve um braço arrancado por um tubarão no começo de julho, e as águas se esvaziaram de novo.

    Dantec falou nostalgicamente, em uma enevoada manhã recente, sobre os motivos para que o surfe em St.-Leu seja tão sublime.

    "É o lugar com as ondas mais consistentes do mundo, 365 dias por ano", ele afirmou.

    Elas tipicamente atingem altura de cerca de 2,5 metros, e quebram de maneira que permite surfar mais de 300 metros direto. "Ondas perfeitas", ele disse.

    Mas por enquanto essas ondas pertencem aos tubarões, e as pichações perto da praia apontam para o fato.

    "À qui le tour?" Quem será o próximo?

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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