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    'Making a Murderer' faz cidade reviver o passado e prejudica o turismo local

    MONICA DAVEY
    DO "NEW YORK TIMES"

    03/02/2016 02h00

    Lauren Justice/'The New York Times'
    The Avery family property that was portrayed in the Netflix documentary series Ã’Making a Murderer,Ó in Manitowoc County, Wis., Jan. 12, 2016. The release last month the documentary series, Ã’Making a Murderer,Ó about Steven Avery and a decade-old murder case, has upended this county of about 80,000 along Lake Michigan, leaving residents to relive their experiences of a decade ago. (Lauren Justice/The New York Times) ORG XMIT: XNYT29 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Propriedade dos Avery, família retratada em '’Making a Murderer', em Manitowoc (EUA)

    No departamento de turismo de Manitowoc, no estado norte-americano de Winsconsin, onde funcionários estão acostumados a indicar as melhores trilhas e praias lacustres do condado, as questões têm se tornado mais sombrias: como vocês conseguem promover o turismo em uma cidade corrupta como essa? E por que alguém faria turismo aqui?

    A fúria –via telefone, e-mail e mídias sociais– também tomou de assalto o gabinete do xerife do condado, a polícia municipal da cidade, a prefeitura e praticamente qualquer outra coisa que leve o nome de Manitowoc.

    Até mesmo a diretora-executiva da Sociedade Histórica do Condado de Manitowoc, Amy Meyer, decidiu ajudar a atender telefonemas, para que os voluntários preparados para atender a pedidos gentis de informações –sobre a história da região como polo de construção naval e sua reivindicação de que a receita do sundae foi criada na cidade– não tenham de ouvir "gritos, insultos e palavrões".

    O lançamento no Netflix da série de documentários "Making a Murderer", sobre um homicídio ocorrido em Manitowoc uma década atrás, virou de cabeça para baixo o condado de 80 mil habitantes à beira do lago Michigan.

    Há dez anos, quando visitei a cidade pela primeira vez, Steven Avery, o morador do condado que tem papel central na série, havia sido detido como suspeito por um homicídio acontecido dias antes.

    O passado de Avery foi o que me levou ao condado de Manitowoc em novembro de 2005: por meses, ele vinha sendo apontado em Wisconsin como símbolo de tudo que havia de errado no sistema de justiça, depois de 18 anos na penitenciária por um ataque sexual que exames de DNA posteriores revelaram ter sido perpetrado por outro homem.

    Depois que Avery foi libertado no caso relacionado ao ataque sexual, e enquanto estava movendo um processo judicial solicitando US$ 36 milhões em indenização das autoridades do condado que o haviam aprisionado injustamente, ele foi acusado do homicídio de Teresa Halbach, 25, uma fotógrafa que havia visitado o ferro-velho de sua família a fim de retratar o local para a revista "Auto Trader".

    Na época, enquanto eu percorria a estrada até a sede do condado, passando pela paisagem severa e rural nas imediações do ferro-velho, o que encontrei foi uma comunidade de laços fortes, em luto pela morte da jovem, e um grupo de defensores de Avery atônitos diante do acontecido.

    Duas alunas de pós-graduação em cinema, em Nova York, leram o artigo que escrevi e dedicaram uma década ao projeto que viria a se tornar a série do Netflix. Por fim, Avery e seu sobrinho Brendan Dassey, que tinha 16 anos quando da morte de Halbach, foram condenados pelo homicídio, um resultado que algumas das pessoas que assistiram à série encaram como mais um exemplo de falha no sistema de justiça.

    Aqui, muitas das pessoas que acompanharam o caso em tempo real, com intensa cobertura pelos veículos noticiosos locais, o consideravam em geral como encerrado.

    Mas com uma audiência muito maior agora consumindo avidamente o ponto de vista das documentaristas e propondo perguntas incômodas sobre a culpa das condenados, e sobre possível manipulação de provas e falhas na investigação pelas autoridades locais, uma torrente de posts nas mídias sociais e de telefonemas está forçando Manitowoc a reconsiderar o passado.

    "Vivemos tudo isso 10 anos atrás", diz Jason Ring, presidente do Serviço de Convenções e Turismo da Área de Manitowoc, atrás de um balcão recoberto de mapas e panfletos. "Nós chegamos às nossas conclusões e o julgamento terminou. Aqui, a maioria das pessoas apoiou o veredicto. Agora o assunto está de volta, e não por escolha ou ato de qualquer pessoa nesta comunidade."

    "Assim, esse é o primeiro ponto na lista de injustiças", ele diz. "Que tenhamos de viver tudo isso de novo."

    No centro de Manitowoc, a cidade que serve de sede ao condado, as pessoas tagarelas e curiosas que encontrei uma década atrás já não demonstravam surpresa ou a menor satisfação diante da presença de mais um repórter. Muitas delas evitaram falar sobre "Making a Murderer", ou simplesmente viram o caderninho de anotações que eu tinha nas mãos e se foram sem responder.

    O prefeito recusou uma entrevista. Proprietários de empresas locais se recusaram a conversar sobre o assunto. Uma delas disse que havia lido on-line sobre um apelo por um protesto nas ruas da cidade, e que estava preocupada com sua segurança.

    Lauren Justice/'The New York Times'
    The Manitowoc River leads to Lake Michigan in Manitowoc County, the area portrayed in the Netflix documentary series “Making a Murderer,” Jan. 12, 2016. The release last month the documentary series, “Making a Murderer,” about Steven Avery and a decade-old murder case, has upended this county of about 80,000 along Lake Michigan, leaving residents to relive their experiences of a decade ago. (Lauren Justice/The New York Times) ORG XMIT: XNYT38 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Vista do rio Manitowoc, que corre até o lago Michigan, nos EUA

    "Veja, já vivemos tudo isso como se fôssemos jurados", disse Suszanne Fox, que vive perto da cidade, enquanto comia um hambúrguer no Fat Seagull. "Ele não podia ser mais culpado."

    Muitos dos espectadores de "Making a Murderer" discordam. Centenas de milhares de pessoas assinaram petições ao presidente Barack Obama por um perdão a Avery e Dassey, ao que a Casa Branca respondeu que o presidente não tem o poder de conceder perdões em casos estaduais.

    O governador Scott Walker prometeu há muito tempo que não concederia perdões judiciais no exercício de seu mandato, e deixou claro que não vê razão para fazê-lo neste caso. Mas a série causou dúvidas graves entre as pessoas que a assistiram. Será que o processo civil movido por Avery contra o condado no caso de sua condenação injusta motivou as autoridades locais a plantar provas para incriminá-lo no segundo caso, por homicídio?

    Por que uma velha amostra do sangue de Avery, obtida no carro da vítima, parece ter sido manipulada enquanto em custódia das autoridades? Será que Dassey, dada sua juventude e suas limitações intelectuais, deveria ter sido interrogado sozinho pela polícia? Será que o advogado apontado para o caso pela defensoria pública trabalhou contra o interesse de seu cliente?

    Mas Ken Kratz, o promotor público que conduziu os casos contra Avery e Dassey, disse que a série apresenta uma visão unilateral e omite provas importantes, entre os quais o DNA de Avery encontrado no fecho do capô do Toyota RAV 4 de Halbach, que foi encontrado no ferro-velho da família de Avery.

    "Não se trata de um documentário, de modo algum, mas de uma peça de propaganda", disse Kratz em entrevista por telefone, de Nova York, onde ele disse estar hospedado no Waldorf Astoria a convite de um programa de televisão que o está entrevistando sobre a série do Netflix.

    As duas cineastas, Laura Ricciardi e Moira Demos, dizem acreditar que a série retratou de forma fiel os argumentos essenciais da promotoria. O ponto de seu trabalho, elas disseram em entrevista por telefone, era usar os casos de Manitowoc como uma janela para o sistema de justiça norte-americano.

    "Sentimos empatia para com Manitowoc porque sabemos que pessoas vêm se manifestando de modo grosseiro e postando coisas sobre a cidade e o condado", disse Ricciardi. "É uma resposta lamentável, porque sempre desejamos que a série fosse construtiva, não destrutiva."

    Avery, 53, e Dassey, 26, não assistiram à série, dizem seus advogados. Presidiários não têm acesso ao Netflix. Mas enquanto Dassey aguarda a decisão de um tribunal federal sobre sua queixa de ter sido coagido a confessar e ter sido privado do direito de um advogado que montasse uma defesa para ele, muitos espectadores vêm expressando apoio a ele, de acordo com sua advogada, Laura Nirider, do Centro para Condenações Indevidas de Jovens na Universidade Northwestern.

    "Ele está muito esperançoso porque pela primeira vez as pessoas que ouvem o nome Brendan Dassey não pensam nele como criminoso, mas como um homem injustiçado."

    E uma nova advogada, Kathleen Zellner, conhecida por seu trabalho em casos de condenação indevida, foi contratada para cuidar do próximo passo na situação de Avery.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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