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    Ornitólogo de 87 anos foi pioneiro em viagens pelo Brasil para observar aves

    BRUNO MOLINERO
    DE SÃO PAULO

    30/03/2017 02h00

    Todos os dias, Johan Dalgas Frisch, 87, segue um ritual quase religioso. Pontualmente às 8h30, vai ao quintal de seu escritório, no coração do bairro Cidade Jardim (zona oeste de São Paulo), e deposita sobre duas mesinhas de concreto uma bandeja repleta de sementes de girassol e outra cheia de frutas, sobretudo mamões e bananas.

    Depois, volta ao interior da casa, onde espia por dois ou três minutos pela janela do segundo andar. E sorri ao ver o local ser invadido por uma multidão de intrusos –dezenas de sabiás, rolinhas, periquitos, sanhaços e até asas-brancas que atacam ferozmente o banquete em uma revoada ruidosa e pontual.

    Por cima da bandeja, sempre mantêm-se os pássaros maiores e mais fortes, como a asa-branca, que bica o "filé" do café da manhã. Os periquitos e outros menores se veem obrigados a ficar com as migalhas do chão ou a chegar mais tarde para a festa.

    "É só colocar comida que eles aparecem. Quem diria que existem tantas espécies diferentes em São Paulo?", diz Dalgas, ornitólogo (estudioso de pássaros) e um dos primeiros brasileiros a viajar pelo país exclusivamente para procurar e gravar aves.

    Foi em 1959, quando ninguém ainda falava sobre o tema no Brasil, que ele se embrenhou pela primeira vez pelo Mato Grosso com um gravador embaixo do braço para captar o canto de diferentes espécies. "Na época da seca, ainda é o melhor lugar no Brasil para observar."

    Três anos depois, em 1962, foi a vez de visitar o Acre para encontrar o arisco uirapuru. Segundo uma lenda amazônica, o pássaro é na verdade um índio apaixonado que foi transformado em ave e pia para o seu grande amor. Quem escuta o canto do bicho pode fazer um pedido, que logo será realizado, ainda de acordo com a história.

    Ao entrar em um seringal na divisa com o Amazonas, acompanhado de um índio e do silêncio da mata fechada, Dalgas ouviu o uirapuru pela primeira vez. Ao preparar o microfone, percebeu que um pequeno pássaro, menor que um tico-tico, havia pousado em seus aparelhos. Tentou espantá-lo, quando levou uma bronca do guia: aquele era o próprio uirapuru.

    Pela proximidade com o animal, o ornitólogo conseguiu um feito inédito: gravar em alta qualidade os sete cantos diferentes do passarinho (no site dele, é possível ouvir o canto de diferentes espécies).

    Divulgação
    Retrato do ornitólogo Johan Dalgas Frisch, que viajou pelo Brasil nos anos 1950 e 1960 para ver aves
    Retrato do ornitólogo Johan Dalgas Frisch, que viajou pelo Brasil nos anos 1950 e 1960 para ver aves

    ESTILINGUE E GAIOLA

    Quem escuta essas histórias nem imagina que, nos anos 1940, os passeios de Dalgas eram um pouco diferentes. Nessa época, ele costumava pedalar pelos lados do Morumbi, sempre com um estilingue a tiracolo. Qualquer coisa que voasse era logo alvo de uma pedrada.

    "Hoje gaiola e estilingue são coisas do passado. Mas esses passeios tinham uma boa causa: levava os passarinhos para meu pai desenhar e, de certa maneira, catalogar as espécies da cidade", conta ele, que diz conhecer de cabeça mais de 400 cantos de aves.

    Seu pai, Svend Frisch,era um engenheiro dinamarquês que veio tentar a vida em São Paulo em 1927. Nunca mais voltou a viver na Europa e desenhou os pássaros do filho até 1969, quando morreu.

    As ilustrações estão reunidas no livro "Aves Brasileiras e Plantas que as Atraem" (2005, 480 págs.), publicado por Dalgas. O ornitólogo tem ainda outras obras publicadas, discos com cantos de animais lançados no Brasil, na Europa e no Japão e até um relógio analógico –que toca o canto de um pássaro diferente a cada vez que os ponteiros acusam uma hora cheia, do bem-te-vi ao uirapuru.

    Mas claro que qualquer ornitólogo gosta mesmo é de ouvir os sons ao vivo. Por isso o ritual do café da manhã, que anda ameaçado nas últimas semanas pelo barulho de uma obra na casa ao lado. "Oi, vizinhos. Vocês se importariam de fazer silêncio durante só uma hora? Para os passarinhos não se assustarem e poderem comer", pergunta Dalgas aos pedreiros.

    E, então, parece que o único som do bairro é um bater de asas e de bicos.

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