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    Cachoeiras, rios e bichos são base de viagem à Chapada dos Guimarães

    HELOÍSA HELVÉCIA
    ENVIADA ESPECIAL A MATO GROSSO

    29/06/2017 02h00 - Atualizado às 16h23

    Bocaina do Inferno era o nome original da principal imagem ligada à Chapada dos Guimarães. A queda-d'água de 86 metros virou mais uma das cascatas "Véu de Noiva" que jorram pelo Brasil. Foi rebatizada pelo arcebispo Aquino Correa (1885-1956), primeiro mato-grossense a entrar na Academia Brasileira de Letras. Nota-se.

    É um nome comum para a cachoeira sem par, circundada por paredões erodidos à moda chapadense, frequentada por araras de vozes estridentes e cores idem.

    Pena estar vetada ao contato íntimo. Em 2008, um grupo de jovens em excursão desceu a trilha até o lago ao pé do Véu da Noiva e foi surpreendido em pleno banho pelo desabamento de uma rocha de arenito. Uma garota morreu. Agora, visitantes ficam protegidos da Bocaina do Inferno. E vice-versa.

    ORELHÃO E SUVENIR

    O que há então é contemplação à beira das grades, restaurante, quiosque de suvenires e orelhão em forma de arara. O acesso ao mirante é feito pela entrada principal do Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, no km 50 da rodovia MT-251.

    A portaria é uma ruína moderna, obra abandonada há quase dez anos e em fase de "replanilhamento", como esclareceu depois por telefone Marcus Ogeda, coordenador de infraestrutura turística da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico.

    O carro fica no estacionamento e encara-se uma trilhinha de 550 metros de preferência levando chapéu, protetor solar e água porque, mesmo no outono, a vegetação é baixa, não faz sombra, e a Chapada é quente.

    Ainda que sua temperatura seja considerada "amena" e chegue a atingir cinco graus abaixo da registrada em Cuiabá (por causa dos ventos e da altitude, 800 metros acima do nível do mar), o sol castiga até em junho.

    Véu da Noiva visto, incrível. Não é a coisa mais emocionante nesse lugar que ostenta 450 cachoeiras catalogadas, sete delas no parque.

    Pela lateral da portaria se faz o acesso a outras belezas mais palpáveis: Cachoeirinha e dos Namorados, uma a uns 50 metros da outra.

    Chega-se a elas entrando na trilha de 1.200 metros no máximo até o meio-dia, e só depois de ler a placa com recomendações de segurança e assinar um "termo de conhecimento de risco".

    O caminho é uma transição entre o cerrado –paisagem mais encardida de árvores baixas e tons terrosos– para a mata de galeria dos livros de geografia, corredores verdes sempre acompanhando cursos de riozinhos.

    Quase no fim da trilha há muretas e degraus de pedra já cobertos por vegetação, restos de ocupação descaracterizante que incluía restaurante, churrascos dominicais, o diabo. Farofas do passado; agora, nem fumar se fuma.

    Depois de uma sequência de cipós grossos pendendo de árvores finas e altas surge a Cachoeirinha. Uma queda de 15 metros, formada pelo rio Coxipozinho, com prainha e piscina rasa.

    Parece que você mergulhou num calendário da seicho-no-iê, especialmente se houver uma população de borboletas rebuscando a cena. Caipiras urbanos piram e levam picadas de mosquito-pólvora, o "porvinha".

    Ao lado, a cachoeira dos Namorados, formada pelo córrego Piedade, com queda de sete metros, é outro banho certo. A cortina de espuma escorrega pela escarpa de ponta a ponta e dá para andar e se esconder atrás dela, talvez daí o nome romântico.

    PARAÍSO DE MALUCO

    A caça à água doce segue pelo Circuito das Cachoeiras, também conhecido por Caminho das Águas (muita coisa na Chapada tem mais de um nome), passeio que exige guia e agendamento.

    Isso porque há um teto de carga diária definido para todo ponto de visita localizado dentro da reserva.

    São 144 pessoas no máximo no caso desse roteiro, informa a analista ambiental Cintia da Câmara Brazão, chefe do parque, que tem 32.630 hectares e é administrado pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).

    O circuito de seis quilômetros, ida e volta, exige caminhada de umas cinco horas. Dá em recompensa, sem falar no caminho em si, seis quedas-d'água e piscinas naturais formadas pelo córrego Independência.

    É tudo liberado para mergulho, com exceção da cachoeira Independência, também chamada cachoeira dos Malucos, porque, informou o guia Vitório Santos, da agência Confiança, uma moçada alternativa arrepiava os locais nos anos 1980 praticando naturismo naquele éden.

    Malucos, ufoturistas, pesquisadores, ambientalistas, fotógrafos e produtores de TV são atraídos pela Chapada, a borda do Planalto Central, o "coração da América do Sul", como diz a propaganda.

    Culpa das paredonas avermelhadas pela ação do óxido de ferro no arenito, das formações esculpidas no vento, da concentração de nascentes, grutas, vales, e de tudo estar assentado sobre uma das placas geológicas mais velhas da Terra, com sítios arqueológicos e signos das mutações espalhados: fósseis, pinturas rupestres, conchas.

    Chapada foi geleira, mar, deserto. Mas o que nutre mais o papo místico lá é a polêmica sobre a cidade ser ou não ser o centro geodésico do continente, o "ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico" no qual desceria de um disco voador "um índio", na canção homônima de Veloso.

    Só que o centro fica mesmo em Cuiabá. O que há, na face sul dos paredões chapadenses, é uma plaquinha com um marco de altitude, loucamente cultuada, em um mirante com vista para a planície pantaneira.

    INFERNO E CÉU

    Pode pular esse, porque mirantes não faltam. Entre eles, o Portão do Inferno é o mais cercado de misticismo. E cercado também por tapumes de zinco, em razão da degradação ambiental e do risco de desabamentos.

    São formações rochosas à beira de um precipício de mais de 50 metros cuja entrada fica em frente a uma curva letal da MT-251, que liga Cuiabá à Chapada, bem no limite entre os municípios.

    Tirando acidentes de carro, quedas fatais e suicídios recorrentes ali –e tirando umas histórias de almas e a lenda segundo a qual o magnetismo do lugar traga tudo para baixo–, é um pecado o Portão do Inferno estar fechado à visitação.

    De lá dá para ver, preservadas no arenito, dunas de areia do deserto extinto, coisa de mais de 150 milhões de anos.

    Por ora você só testemunha, através da cerca de arame, o fóssil de uma lanchonete pintada de vermelho com a marca da Coca-Cola.

    Logo depois do Portão do Inferno, na mesma rodovia, vem a Porta do Céu (também falam "lá na Mata Fria" referindo-se ao lugar), uma parada da estrada antiga onde viajantes alimentavam os animais e rezavam.

    Às margens há rochas figurativas estranhas, que parecem talhadas por gente, como a Pedra do Camelo e a Pedra do Sapo.

    Esta última foi vítima recente de um ato de vandalismo redundante. Acharam bacana fixar um sapo de cimento em cima da escultura natural que lembra o anfíbio, moldada por chuva, vento e sabe-se lá por quantos milhões de anos.

    Já a estátua de ET que recebe o turista na entrada da Casa do Mel Buriti foi feita por humanos mesmo. Trata-se de um complexo com apiário, pousada, lanchonete, piscina, lojinha e, o principal, muita visão panorâmica.

    De lá sai a Trilha do Mel, ou dos Dinossauros. Segundo o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), porém, "trata-se de área de ocupação irregular no interior do Parque Nacional, onde há diversos autos de infração administrativos vigentes, embargos administrativos e judiciais".

    O apicultor Sidarta Spíndola, arrendador da propriedade da família, administrador da trilha e testemunha ocular de objeto voador não identificado tem ali 120 caixas de abelhas.

    Ele diz que é "muito difícil tirar mel do cerrado". Por isso vale provar, valorizar e levar o tipo silvestre, com favo, que custa R$ 38 o vidro.

    O gosto salgado do cerrado está representado na versão chapadense do arroz de carreteiro: carne seca fatiada, frita, refogada, depois cozida com arroz em panela de ferro e levada à mesa com farofa de banana e feijão.

    O nome do prato é Maria Izabé, conforme o cardápio do restaurante Morro dos Ventos. Fica em condomínio rural, a um quilômetro da cidade. Em frente há uma plataforma de aço que avança no abismo sobre aqueles
    cânions sem fim. O melhor cenário de selfie até agora.

    Só que o pôr do sol acontece no ponto de maior altitude da Chapada, 860 metros. É um mirante a 17 quilômetros do centro, dentro de uma fazenda. Há uma estrada de terra e um bar onde se paga alguma coisa antes de tomar uma trilha de 800 metros que leva a uma passarela e a um deque de madeira de onde se tem a visão mais completa desses relevos loucos.

    Pode ser que haja um casal de noivos posando para o álbum, ou um povo da ioga fazendo aula ao ar livre.

    Da plataforma você vê a depressão cuiabana, o Pantanal, o rio Cuiabá, o lado mais fotogênico do morro de São Jerônimo, que para alguns é "aeroporto de óvni", a capital do Estado. Cuiabá sinaliza o fim do show quando acende todas as luzes.

    É a deixa para vestir o agasalho, caprichar no repelente e pegar a trilha de volta. O dia acabou no bem batizado mirante do Alto do Céu.

    A jornalista viajou a convite do Malai Manso Resort

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