• Turismo

    Thursday, 02-May-2024 03:04:34 -03

    Siga as marcas da vida e da obra de Gabriel García Márquez em Cartagena

    SYLVIA COLOMBO
    EM CARTAGENA

    19/10/2017 02h00

    Existem brasileiros por todos os lados em Cartagena. Tiram selfies junto à sua imponente muralha, visitam suas igrejas, andam de carruagem à noite pelas ruas de pedra e jantam ao ar livre sentindo a brisa caribenha. Não é à toa que se trata de um destino dos sonhos para qualquer turista.

    Mas há um modo diferente de desfrutar a cidade, caso a ideia seja misturar passeio com literatura. O prêmio Nobel colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014) viveu ali entre 1948 e 1949, fugindo de um período de intensa violência em Bogotá que o obrigou a trocar a universidade que cursava na capital pela da cidade caribenha.

    Apesar do pouco tempo que passou acolhido pela cidade amuralhada, o autor sempre dedicou a ela um lugar fundamental entre suas referências.

    "Todos os meus livros têm algum cabo solto com relação a alguma história que vi ou vivi em Cartagena. Com o tempo, quando tento chamar minhas melhores recordações, sempre surge uma cena, um lugar ou uma pessoa que conheci em Cartagena", disse, numa entrevista já no final de sua vida.

    PRIMEIRO EMPREGO

    Foi nesta cidade caribenha que Gabo conseguiu seu primeiro emprego regular como jornalista, no diário "El Espectador".

    Apesar de haver referências ao município em várias de suas obras, as que melhor mostram isso são "O Amor nos Tempos do Cólera", que conta a história de um homem que espera a vida toda para estar com a mulher por quem é apaixonado, e "De Amor e Outros Demônios", baseada num fato real que Gabo, como jornalista, acompanhou: a descoberta de um cadáver durante a escavação de um antigo convento, hoje transformado num luxuoso hotel, o Santa Clara. Do convento original, sobrou apenas a cripta, hoje um agradável bar para tomar drinques tropicais no fim da tarde.

    García Márquez chegou à cidade só com a roupa do corpo naquela noite de abril de 1948, sem um tostão, pois a pensão onde vivia em Bogotá tinha sido incendiada com suas coisas dentro, incluindo a máquina de escrever.

    Um amigo em Cartagena disse que o receberia, mas, quando o escritor chegou, o sujeito tinha desaparecido. Gabo adormeceu, então, num dos bancos do parque Bolívar, algo que hoje talvez fosse impossível, pois o local virou um animado ponto de encontro onde se pode ver shows folclóricos e há wi-fi aberto para os turistas.

    Dos bancos desse parque e do cais do porto, observando aquela cidade festeira, mas também religiosa, e na qual sentia uma palpável atmosfera de sofrimento vinda de seu passado como local de chegada de escravos africanos, Gabo resolveu construir a história do amor impossível entre Florentino Ariza e Fermina Daza.

    O romance é inspirado também no de seus próprios pais, que foi dificultado pelas famílias de ambos, pelas instituições e pelas regras sociais que definiam os matrimônios de então. O resultado acabou virando "O Amor nos Tempos do Cólera".

    Com relação a esse livro, além do parque Bolívar, também se pode visitar outros pontos que inspiraram Gabo, como a praça Fernández de Madrid, onde fica a casa em que o escritor imaginou que sua protagonista vivia. Foi ali que seu amado teria entrado uma vez para entregar um telegrama ao pai dela, quando apenas a vislumbrou numa das salas, o suficiente para apaixonar-se para sempre.

    Logo na entrada da cidade, há uma via de pedestres chamada de Camellón de los Mártires. O escritor ia ali conversar com amigos e escutar histórias que traziam os marinheiros e gente que vinha do interior do país.
    Um dia, Gabo ouviu a saga de um general que sobrevivera a várias guerras, e que transformaria, na ficção, no Aureliano Buendía de "Cem Anos de Solidão", romance cujo cinquentenário a Colômbia festeja neste ano.

    BAIRRO MARGINAL

    Nessa mesma via, há uma estátua. Em suas memórias, Gabo conta que foi ao pé dela que discutiu com seu pai. Ele insistia para que o filho não abandonasse o curso de direito. Mas o futuro prêmio Nobel já havia decidido que o faria, pois seu sonho era ser escritor. O pai, então, teria respondido: "Pois então você irá comer papel".

    A profecia não foi totalmente mentirosa, uma vez que Gabo demorou para fazer sucesso e, até o fim dos anos 1960, vivia endividado.

    Fora da cidade amuralhada, há um antigo bairro, naquela época marginal, que ele adorava. Trata-se do Getsemaní, que então era habitado por uma mistura de pessoas vindas de outros portos, do interior da Colômbia, e gente que fugia de alguma situação complicada e queria se reinventar. Um lugar habitado por quem não pertencia à aristocracia que vivia muros adentro da cidade.

    Gabo gostava de observar seus mercados e a mistura de sotaques e idiomas que o inspiraram a criar personagens.

    Já nos dias de hoje, o Getsemaní é o local do agito dos turistas mais jovens. O bairro passou por uma revitalização, com a instalação de bares, lojas de artesanato e de moda em suas antigas casas.

    Até a ex-candidata a presidente dos EUA, Hillary Clinton, durante a Cúpula das Américas de 2012, foi flagrada dançando num dos bares.

    PRESENTE EM TODA PARTE

    Se chegou ali como anônimo e sem um peso no bolso, hoje o escritor Gabriel García Márquez se faz cada vez mais presente em Cartagena.

    Primeiro foram seus restos mortais, que vieram do México, onde passou seus últimos anos, para serem depositados no Claustro da Universidade de Cartagena.

    E, em 2018, o antigo edifício do governo municipal, muito próximo ao parque Bolívar, onde o escritor passou sua primeira noite ao léu, se tornará a sede do Centro Gabo, que promoverá oficinas, exposições e a divulgação da obra de García Márquez.

    A Cartagena em que o turista desembarca hoje é alegre e festiva. Do lado de fora da muralha, expandiu-se ao longo da praia, com uma infinidade de hotéis e resorts. Bem diferente da cidade que Gabo encontrou nos anos 1940, com apenas 130 mil habitantes e com edifícios coloniais em franca decadência.

    O sentimento que o escritor descreveu sentir, no entanto, não é alheio a quem pisa ali pela primeira vez, seja na época que for.

    "Me bastou dar um passo dentro da muralha para vê-la em toda a sua grandeza, à luz das seis da tarde, e não pude reprimir o sentimento de ter voltado a nascer".

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024