Márcio Fernandes - 14.nov.1997/Folhapress | ||
Ice Blue (à esquerda) e Mano Brown, integrantes dos Racionais MC's, no bairro do Capão Redondo, na zona Sul de São Paulo |
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Banco de Dados
Sunday, 22-Dec-2024 11:02:32 -03Saiu no NP
Há 20 anos, Racionais deram entrevista exclusiva ao 'NP'
DO BANCO DE DADOS FOLHA
16/11/2017 18h20
Antecipando as celebrações do "Dia da Consciência Negra", que completa 14 anos no próximo dia 20 de novembro, a seção "Saiu no NP" desta quinta (16) reproduz entrevista exclusiva do colunista Djalma Campos com os rappers Mano Brown e Ice Blue, dos Racionais MCs, publicada no "Notícias Populares" em 16 de novembro de 1997.
Há 20 anos, o grupo, que conta ainda com Edi Rock e Kl Jay, estava em campanha para o lançamento do quarto álbum, "Sobrevivendo no Inferno" (1997), cujas 9 das 12 faixas, entre elas "Capítulo 4, Versículo 6", "Diário de um Detento", "Fórmula Mágica da Paz", e "Mágico de Oz", foram comentadas por Mano Brown durante a conversa. Ao longo dessa trajetória eles gravaram seis álbuns, de "Holocausto Urbano" (1990) a "Cores & Valores" (2014).
Conhecido nacionalmente em 1993, com o clássico "Um Homem na Estrada", do álbum "Raio X do Brasil", os Racionais não nasceram apenas com o propósito de entretenimento, mas, principalmente, com a função de ecoar o lamento de uma periferia massacrada e relegada em seus mais significativos direitos e valores, sem nunca abandonar a luta contra o genocídio constante da população negra e pobre do país.
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Leia a íntegra da entrevista concedida ao "Notícias Populares" em 16 de novembro de 1997
POR DJALMA CAMPOS
O silêncio de quatro anos e a distância das rádios e jornais não foram capazes de calar a fúria dos rappers dos Racionais MC's.
Mergulhados no inferno da violência na periferia, eles acabam de lançar o CD "Sobrevivendo no Inferno", um retrato do dia a dia numa das regiões mais violentas do país.
Sem fazer alarde, em apenas 15 dias eles venderam 100 mil cópias do disco.
Numa espremida garagem no Capão Redondo, Mano Brown e Ice Blue falaram com exclusividade ao "NP" sobre rap, violência e até vida em família.
Como vocês conseguiram recuperar o nome Racionais MC's (o grupo perdeu a marca pra gravadora Zimbabwe, no ano passado)?
Brown - A Zimbabwe nos chamou para um acordo. Aí, eles passaram o nome de volta, falaram que era nosso e nunca quiseram ficar com ele. Disseram que essa briga não ia levar os pretos pra lugar nenhum.
Quando vocês decidiram lançar o selo próprio, o Cosa Nostra?
Brown - O selo é um barato inédito no rap. A gente faz o discurso e vende pra distribuidora, que faz o resto. Você sai ganhando, tá ligado?
Vocês queriam ter maior controle sobre as vendas?
Brown - Maior controle sobre o dinheiro. Nós fazemos as música. Nada mais justo do que o dinheiro entrar na nossa mão primeiro.
Márcio Fernandes - 14.nov.1997/Folhapress Os integrantes dos Racionais MC's, Mano Brown (à esquerda) e Ice Blue (centro), no bairro do Capão Redondo, na zona Sul de São Paulo No novo CD tem uma versão diferente de "Fórmula Mágica da Paz". Vocês tocaram uma nas rádios e acabaram gravando outra. Por quê?
Brown - Coincidiu que, depois do lançamento da música, saíram três versões nos Estados Unidos em cima do mesmo som, mano. A nossa ia ser a quarta. Nosso disco atrasou e ficamos pra trás. A gente resolveu mudar. Aquela música significa muito mais pra mim do que a do Zapp, que é a que a gente usou.
Em várias faixas de "Sobrevivendo no Inferno" você diz que chegou aos "27 anos contrariando as estatísticas". Você tem medo de morrer?
Brown - Medo de morrer eu não tenho, não. Só Deus sabe a minha hora. A gente fala da estatística porque na zona sul de São Paulo a maioria dos caras não chega aos 23 ou 24 anos. A maioria dos caras na nossa picada, que vive da mesma maneira que a gente, da nossa cor, não chega a essa idade. Quando você passa dos 25, já começa a falar: "Tô no lucro". A maioria morre ou vai preso antes. A gente não passou nesses venenos, tipo pegar uma cana. Na época que estava todo mundo "desandando", entrando pro crime, a gente achou o rap. O rap nos salvou. Da nossa época, só nós estamos vivos (Brown e Blue). O resto tá tudo morto.
Ice Blue - Tem uns dois ou três manos que ainda estão por aí, mas estão presos. Cada dia que a gente acorda, anda pela rua e volta pra casa é uma vitória.
Brown - Pode parecer exagero pra quem não conhece. Mas fale com um cara da área e pergunte o que ele planeja pra daqui a cinco anos. Ele vai falar isso pra você.
Você pensava que hoje não podia estar mais vivo?
Brown - É a gente vive no limite do crime com o sucesso. Convivemos com os dois lados. A gente vai nos lugares pra cantar, conhece caras famosos, cheios do dinheiro e carro importado. Quando você volta pra realidade, vê o desemprego, droga pra caralho e uma pá de irmão se acabando no álcool. Você vê a diferença da vida que você está levando e a que os manos da sua época estão levando.
Ainda não deu pra juntar dinheiro? Vocês não pensam em sair do Capão?
Blue - Sair da zona sul [de São Paulo] não. Aqui é minha casa, não sei viver em outro lugar. Os manos que convivem com a gente batem bola por aqui. Vamos morar em outro lugar pra falar do quê nas músicas?
Brown - Todo mundo que mora aqui já pensou em sair fora. Você pensa direto em mudar. De vez em quando acontece uns baratos e você fala: "Vou embora daqui". E aí você fala: "Lá é outro mundo". A raiz está aqui. O jeito que eu sei viver é este. Não adianta querer viver como um cara da classe A. Não sei viver assim!
Já deu pra ganhar bastante dinheiro com a música?
Brown - Muito, não. Comprei isso aí, esse apartamento da Cohab (aponta para o prédio), e um Diplomata (carro), tá ligado? Para mim tá bom. Se entrar mais dinheiro, tá pela ordem (Está certo). Mas eu quero ganhar dinheiro com ética. Não quero rebolar, usar batom, pintar o cabelo, esses baratos aí. Pôr três, quatro brincos, o caralho!
Márcio Fernandes - 14.nov.1997/Folhapress Ice Blue e Mano Brown (em cima do carro), integrantes dos Racionais MC's, no Capão Redondo, bairro da zona Sul de São Paulo Para quem você está falando isso? Para os sambistas?
Brown - Pros malucos que estão indo pra televisão fazer essa média. Sambistas, a maioria. Não vou citar nomes.
De que forma isso te incomoda?
Brown - Não é que incomoda [para e pensa]. Irrita pelo seguinte, os caras são pretos e você vê os caras fazendo aquela comédia, com uma pá de coisas importantes pra falar. Acontecendo um monte de coisa nas ruas e os caras tapando o sol com a peneira, fazendo Um carnaval, um oba-oba, um circo que não existe. Quem faz tudo por dinheiro é prostituta. Manda rebolar, rebola. Virar a bunda, vira, tá ligado? Aí é foda. Eu não vou fazer isso.
Você acha que o samba mostra a "cara" da periferia? Ou eles estão longe da realidade do povão?
Brown - Não vou falar de quem eu gosto nem de quem não gosto.
Mas você gosta do Jorge Ben (hoje Benjor).
Brown - Jorge Ben eu gosto. É o meu preferido. [Dona Ana, mãe do Brown, lembra do Negritude, que já gravou com o filho].
E o Negritude? Você tem CD deles na sua casa?
Brown - Respeito, respeito. Tenho o CD, até tenho. Melhor não citar nomes.
Vocês são acusados de escrever letras machistas. Qual é a opinião do grupo a respeito das mulheres?
Brown - Mulher é a parte boa do mundo. Esse negócio de machista não tem nada a ver. O cara que é machista demais tem mais tendência pra virar viado. As músicas que fizemos eram onda, era pra tirar um barato.
O que você acha da Carla Perez?
Brown - A gente veio pra fazer rap. É difícil você gostar de rap e ouvir o "É o Tchan" e outros bagulhos. Respeito porque são músicos. A gente não pode criticar a maneira de ser deles, como não devemos ser criticados.
Você costumava dar palestras em escolas. Continua fazendo?
Brown - Eu não gosto do termo "palestra" porque parece que eu sou um professor. A gente vai lá trocar uma ideia. Tem uma marcada pra zona sul.
Márcio Fernandes - 14.nov.1997/Folhapress Garoto brinca com bola perto dos integrantes dos Racionais MC's, Ice Blue (à direita) e Mano Brown Você já pensou em se candidatar a vereador ou deputado?
Brown - Tem cara que fala que eu deveria tentar, mas não penso nisso agora, não. Você tem que fazer o que é competente pra fazer, cara. O que adianta fazer duas coisas e nenhuma que preste? Tenho que fazer rap, que é o que sei fazer no momento. Mais pra frente, eu não sei.
Quando você lançaram este CD tinham ideia que poderiam vender 100 mil cópias em tão pouco tempo?
Brown - O Racionais surpreende toda hora. É uma pá de coisa que não dá pra entender.
Blue - Surpreende tanto o grupo como a mídia [jornais, revistas, rádio, TV]. A gente fica surpreso, e a mídia também.
Por você optaram por ficar longe da mídia?
Brown - Porque enche o saco. Gosto do sossego, de viver na paz. De fazer o que eu faço na manhã. Tem também o perigo de deturparem o que a gente fala. Não faz falta fazer TV e rádio.
Vocês nunca vão aceitar convites pra programas de TV?
Brown - Nunca é muito tempo! Não vou falar nunca porque qualquer hora acontece um barato fodido e estou lá.
Mas vocês não pensam em multiplicar o público do Racionais?
Brown - É a tentação, mas eu prefiro ficar devagar e sempre. Enche o saco. É o seguinte: não gosto de muita pagação, gosto de ficar na moral, como estou aqui. Jogo uma bola aí [aponta pro campinho do Jardim Iaê], ninguém me perturba. Vou cantar, gravo os discos e faço os raps. Quero é viver, todo mundo quer viver. O dinheiro não te dá a paz, te dá é muito problema. O cara ganha muito dinheiro e não vive. Fica escondido, com segurança e guarda-costa. Eu não preciso de guarda-costa, meu guarda-costa é Deus.
No novo CD, os Racionais dedicam as faixas a jogadores famosos. Você convivem com os craques?
Brown - Conviver, não. A gente joga bola com eles aqui, no Capão [Redondo]. O Edinho já veio aqui, mas foi o único. A gente dedica porque eles curtem o barato. Não têm vergonha de falar. Tem uma pá de prego que ganha dinheiro, o cara é preto e consegue sair da favela. Cafu, por exemplo. O cara, quando ganha dinheiro, diz que gosta de sertanejo, de Zezé Di Camargo e Luciano. Mentira! O cara curtiu baile, andou na periferia, fodido, viu tiroteio e viu morte. Agora fica mentindo, fingindo. Jogador de futebol no Brasil fala mais alto que o presidente, mano. Ainda mais esses caras de times grandes, São Paulo, Santos, Palmeiras, Corinthians. O cara não se assume, o Tico assume, o Roque, Denílson Os moleques tão aí e se assumem: sou preto, sou da favela e gosto de Racionais e Thaíde. Dou um ponto porque os caras têm vergonha na cara.
Você acompanha jogos de futebol nos estádios? Não sente medo de violência lá dentro?
Brown - Já vi várias pancadarias. Participei pra não morrer. A violência está generalizada. No estádio é onde o cara extravasa. Vários malucos não têm a família deles e querem mostrar poder.
O que você estão achando do novo momento do rap, com novos CDs de Thaíde e DJ Hum e Pavilhão 9?
Brown - Respeito todos. Dentro do rap, eu respeito todos.
Márcio Fernandes - 14.nov.1997/Folhapress Ice Blue (à esquerda) e Mano Brown, integrantes dos Racionais MC's, em campo de futebol no bairro do Capão Redondo, na zona Sul de São Paulo E o lance de o Pavilhão ter tocado no Palace. O que você acha disso?
Brown - É indiferente. Tem muito lugar que eu não fui ainda, muito lugar bom. Faria lá se meu público pudesse ir. Tentaria baixar o preço. O pessoal tem que ir em lugar bom, som bom e um lugar bom. Conforto. O pessoal tem que sentir o gosto do barato bom. Quero que meu pessoal vá lá, não fazer show pra playboy, com entrada a 40 contos pra favela não ir. Vamos lançar nosso CD numa praça do Jardim Pirajuçara. Vamos achar um lugar fechado pra lançar o disco.
Blue - Com preços populares. Não é pra ganhar dinheiro. Vamos oferecer o que os Racionais podem dar pro público.
Como vocês aprenderam a gostar de rap?
Brown - Comecei com James Brown e Kurtis Blow. Aí, nunca mais parou.
Vocês já receberam proposta de grandes gravadoras, como Sony e a BMG. Por que não aceitaram?
Blue - Quando não éramos conhecidos, a Sony ofereceu um dinheiro bom, um lugar pra gente morar e contrato de três anos. Éramos garotos e não nos vendemos. Não vai ser agora. Estamos fazendo música pelo povo. Se fosse pelo dinheiro, teríamos assinado contrato e feito TV. Show no Palace, não. Olympia, não. Os caras devem perguntar: "Como eles conseguem?"
*[para Mano Brown] Como você imagina o futuro de seus filhos [ele é pai de um garoto de quatro anos]?*
Brown - Quero dar uma casa pra ele morar. O resto é com ele. Ele vai lutar pelas coisas dele. Não vou ficar me lascando pra criar moleque playboy e preguiçoso como os outros. Vai estudar, vai trampar e não pode ter vergonha de trabalhar em nada. Se tiver que pegar na enxada, vai pegar. Se tiver que correr atrás de caminhão de lixo, vai correr.
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BROWN COMENTA AS FAIXAS DO ÁLBUM "SOBREVIVENDO NO INFERNO"
Jorge da Capadócia
É uma homenagem a Ogum, que é um orixá que abre os caminhos, e a Jorge Ben. Quando abrimos o selo, abrimos uma guerra. Ogum vai abrir uma frente pra gente.Capítulo 4, Versículo 3
Para quem achou que o Racionais tava morto, estamos voltando. É o capítulo quarto.Tô Ouvindo Alguém me Chamar
Faltam dez minutos pra um cara morrer. Acabou de tomar uns tiros, tá deitado no chão recebendo socorro, e começa a lembrar de todas as pilantragens que fez. É a morte chamando ele.Rapaz Comum
Conta a história de um rapaz comum. É o que acontece todo dia: o cara tá assistindo a um jogo, aí toca a campainha... quando ele vai atender, o cara senta o dedo (atira).Diário de um Detento
É uma letra que conta um dia antes, durante e depois do massacre no Carandiru. Eu catei depoimentos de vários presos. Uma parte foi composta por um cara de lá. Fomos jogar bola lá dentro e recebi a letra. Um primo que tava lá contou os detalhes.Periferia é Periferia
É do Edy Rock. É a história de um trabalhador que compra um revólver pra se defender e acaba matando um moleque. O viciado em drogas vai roubar o trabalhador que mata ele.Mágico de Oz
Conta a história dos moleques do centro da cidade, do crack.Fórmula Mágica da Paz
Fala da zona sul e de como você pode fazer o inferno dentro da sua própria cabeça. Se você já sai preparado pra receber violência, vai cometer mais atos de violência.Salve
Falamos dos lugares que já visitamos. Os manos que conhecemos lá. Fala de bairro que ninguém nem fala, como o Colônia. Lá tem até índio. É um lugar esquecido. Se os Racionais não falam desses lugares, ninguém vai falar. Nem samba, nem porra nenhuma.Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br
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