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    Excentricidade e brutalidade marcam o governo de Gaddafi na Líbia

    DA BBC BRASIL

    22/08/2011 16h30

    Em um período que se estende por quatro décadas, o dítador líbio, Muammar Gaddafi, desfilou pelo cenário internacional com um estilo tão peculiar e imprevisível que as palavras "excêntrico" ou "dissidente" talvez não consigam descrevê-lo com exatidão.

    Com suas aparições em reuniões internacionais marcadas por roupas extravagantes e discursos sem rodeios, Gaddafi foi visto como herói revolucionário, pária do cenário internacional, parceiro estratégico valorizado e novamente pária.

    O líder líbio desenvolveu sua própria filosofia política, escrevendo um livro que é, pelo menos de acordo com o autor, tão influente que se destaca mais do que qualquer coisa feita por Platão, Marx ou Locke.

    INÍCIO

    Em 1969, quando tomou o poder em um golpe militar sem violência, e no início da década de 70, Muamar Gaddafi era um jovem oficial do Exército, considerado bonito e carismático.

    Discípulo do presidente Gamal Abdel Nasser, do Egito (ele até adotou a mesma patente militar de Nasser, se promovendo de capitão para coronel depois do golpe), Gaddafi começou seu governo enfrentando o legado de injustiça econômica deixado pela dominação estrangeira na Líbia.

    E a grande questão de Gaddafi foi o petróleo.

    No final da década de 50, reservas de petróleo foram descobertas na Líbia, mas a extração do produto era controlada por companhias estrangeiras, que estabeleciam os preços para dar vantagens aos consumidores de seus países de origem e ficavam com metade da renda.

    Khadafi exigiu a renegociação dos contratos, ameaçando fechar a produção se as companhias petroleiras se recusassem. Ele desafiou os executivos destas companhias estrangeiras, afirmando que "pessoas que viveram sem petróleo por 5.000 anos podem viver sem isto de novo por alguns anos para conquistar seus direitos".

    A estratégia funcionou e a Líbia se transformou no primeiro país em desenvolvimento a garantir uma fatia majoritária dos ganhos de sua própria produção de petróleo. Outros países logo seguiram o exemplo e o boom do petróleo árabe da década de 70 começou.

    E a Líbia logo colheu os benefícios. Com os níveis de produção alcançando os de países do Golfo, e uma das menores populações da África (menos de 3 milhões de pessoas na época), o país enriqueceu rapidamente.

    OUTRO CAMINHO

    Ao invés de seguir as doutrinas do nacionalismo árabe ou seguir os excessos consumistas dos países do Golfo, Khadafi preferiu seguir outro caminho.

    Filho de pais beduínos, nascido em 1942, Muamar Khadafi era um homem inteligente e talentoso, mas ele não teve uma educação completa, a não ser pela leitura do Alcorão e pelo treinamento militar.

    No entanto, no começo dos anos 70, ele resolveu ser um filósofo político, desenvolvendo o que chamou de terceira teoria universal, destacada em seu famoso Livro Verde.

    A teoria alega resolver as contradições inerentes no capitalismo e comunismo (a primeira e segunda teorias), para colocar o mundo em um caminho de revolução política, econômica e social e libertar os povos oprimidos.

    Na verdade, a teoria é uma série de críticas severas e é muito irônico que um texto cujo objetivo seria libertar os povos dos interesses de sistemas políticos dominantes tenha sido usado para dominar uma população inteira.

    O resultado da teoria de Gaddafi, marcada pela intolerância absoluta a opiniões dissidentes ou alternativas, foi o esvaziamento da sociedade líbia de todos os vestígios de constitucionalidade, sociedade civil ou participação política

    autêntica.

    SISTEMA

    O livro de Gaddafi afirma que a solução dos problemas da sociedade não está na representação eleitoral, descrita por ele como uma "ditadura" do maior partido, ou qualquer outro sistema político. Mas o estabelecimento de comitês do povo para governar todos os aspectos da vida.

    Este novo sistema é apresentado em forma de um diagrama no Livro Verde, com os congressos populares mais básicos em volta da borda de uma roda, elegendo os comitês do povo, que influencia um secretariado do povo, no centro.

    O povo líbio foi levado a participar dos congressos populares, que não tinham poder real, autoridade ou orçamento, com o conhecimento de que qualquer um que falasse fora de sua vez ou criticasse o regime seria levado para uma prisão.

    Uma série de leis draconianas foi imposta em nome da segurança do país com penas que incluíam punições coletivas, morte para os que espalhassem teorias que visassem implementar mudanças na Constituição e prisão perpétua para os que disseminassem informações que prejudicassem a reputação do país.

    As histórias de tortura, longas penas de prisão sem um tribunal justo, execuções e desaparecimentos se multiplicaram.

    Muitos dos cidadãos mais bem educados e qualificados escolheram o exílio ao invés de servir o regime.

    CACHORRO LOUCO

    Sem as restrições, Gaddafi foi capaz de espalhar sua campanha contra o imperialismo pelo mundo, financiando e apoiando grupos e movimentos de resistência.

    Ele também atingiu líbios exilados e dezenas destes foram mortos por assassinos que pertenceriam a uma rede secreta global da Líbia.

    Mas, se os governos de outros países não se importavam com a violação de direitos na Líbia e perseguição de dissidentes, a situação de Khadafi mudou em 1986, quando uma casa noturna usada por soldados americanos em Berlim foi atacada com bombas e a culpa recaiu em agentes líbios.

    O então presidente americano, Ronald Reagan, ordenou ataques aéreos contra Trípoli e Benghazi, como retaliação pela morte de dois soldados e um civil, além das dezenas de feridos em Berlim, mesmo sem provas concretas do envolvimento da Líbia.

    A retaliação visava matar o "cachorro louco do Oriente Médio", como Reagan o chamou na época. Mas, apesar dos danos, de um número desconhecido de mortos, incluindo daquela que seria a filha adotiva de Khadafi, o líder líbio escapou ileso.

    O próximo incidente desfavorável foi a explosão do voo 103 da Pan Am, sobre a cidade escocesa de Lockerbie, em 1988, causando a morte de 270 pessoas, no pior atentado da história do Reino Unido.

    Inicialmente, Gaddafi se recusou a entregar os dois suspeitos líbios para a Justiça escocesa, o que resultou em um período de negociações e sanções da ONU. Isto acabou em 1999, quando eles foram entregues e julgados.

    Um deles, Abdelbasset Ali al-Megrahi foi condenado à prisão perpétua.

    SÉCULO 21

    A resolução do caso Lockerbie, junto com a renúncia de Gaddafi ao programa nuclear e de armas químicas, abriu

    caminho para uma retomada das relações entre a Líbia e os países ocidentais no século 21.

    A retomada das relações foi vista como um dos poucos resultados positivos da invasão militar do Iraque em 2003. Khadafi teria visto o destino de Saddam Hussein, enforcado pelos iraquianos depois de um processo liderado pelos americanos, e teria aprendido a lição.

    Com as sanções internacionais suspensas, Trípoli voltou ao itinerário da política internacional e, com isso, líderes como ex-premiê britânico Tony Blair, entre outros, frequentaram a luxuosa tenda ao estilo beduíno de Khadafi, erguida no terreno de seu palácio. Uma tenda que Khadafi levava junto com todo o luxo em suas viagens.

    Apesar dos protestos de familiares americanos das vítimas do atentado de Lockerbie, a Líbia continuou fechando contratos com companhias ocidentais.

    Entre os árabes, Gaddafi manteve sua fama de ovelha negra na primeira década do século 21, fazendo aparições extravagantes nas reuniões da Liga Árabe, acendendo cigarros e jogando a fumaça no rosto do vizinho, com seus discursos inflamados ou se proclamando "rei dos reis da África".

    REBELIÃO

    Quando as primeiras revoltas começaram nos países árabes, em dezembro de 2010, a Líbia não estava no topo da maioria das listas de apostas dos próximos países.

    Khadafi se encaixava no perfil de líder autoritário há décadas no poder, mas não era visto como servo do Ocidente ou acusado de não privilegiar os interesses de seu próprio povo.

    Ele tinha redistribuído a riqueza, apesar de ser difícil ignorar o enriquecimento de sua própria família com o petróleo do país.

    Khadafi também promoveu grandes obras públicas e houve até uma chamada Primavera de Trípoli, na qual foi dado a entender aos exilados que eles poderiam voltar ao país sem o risco de ir para a prisão ou serem perseguidos.

    E, quando os primeiros sinais de manifestações começaram no país, Khadafi prometeu protestar junto com o povo.

    Mas as primeiras imagens da rebelião no país mostraram jovens líbios em Benghazi em frente a um prédio oficial, destruindo um monumento que simbolizava o Livro Verde de Gaddafi.

    E, enquanto a rebelião se espalhava, e a gravidade da ameaça ao seu regime ficava cada vez mais aparente, Khadafi mostrou que não tinha perdido nenhuma da brutalidade que mostrou contra dissidentes nas décadas de 70 e 80.

    Desta vez, esta brutalidade foi direcionada contra cidades inteiras onde as pessoas ousaram pedir sua saída. As forças regulares do país, com o apoio de mercenários, quase subjugaram os grupos rebeldes, formados por militares desertores e milicianos com pouco treinamento.

    Mas, a intervenção da Otan em março, autorizada pela resolução da ONU que pedia a proteção de civis líbios, evitou a aniquilação destes rebeldes. No entanto, eles ainda precisaram de meses para conseguir uma vantagem.

    No momento em que este artigo foi escrito, os rebeldes chegaram a Trípoli e o regime de Khadafi parece ter se desintegrado. Mas, o último capítulo de sua carreira política ainda não foi escrito e o final poderá ser imprevisível.

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