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    Casal faz fertilização in vitro para impedir doença genética

    FLÁVIA MANTOVANI
    da Folha de S.Paulo

    01/02/2009 10h42

    Ele foi diagnosticado com uma doença genética incurável aos 30 anos. Das leves pontadas nos pés que sentia no início, foi perdendo a sensibilidade e a força nas pernas e teve dores no corpo todo, problemas digestivos e cardíacos. Perdeu a mãe e o irmão pelo mesmo problema e deixou Manaus, onde nasceu, para buscar um transplante de fígado em São Paulo --a única forma de parar a evolução da síndrome. Esperou por quase dois anos até que, em janeiro de 2008, conseguiu um doador.

    Um ano depois, o funcionário público André Luiz Gonçalves Bittencourt, 32, está recuperado da cirurgia e se prepara para ser pai. Sua mulher, a engenheira civil Paula de Melo Bittencourt, 30, está grávida de uma menina que, com 98% de certeza, não terá o gene causador da síndrome que afetou a família, a paramiloidose.

    Marlene Bergamo/Folha Imagem
    Paula e André Bittencourt, que fizeram FIV para evitar doença genética; bebê tem 98% de chances de não ter gene causador da síndrome
    Paula e André Bittencourt, que fizeram FIV para evitar doença; bebê tem 98% de chances de não ter gene causador da síndrome

    Se tivessem optado por uma gravidez natural, a chance de o bebê nascer com o problema seria de 50%. André não queria correr o risco, mas Paula chegou a cogitar essa opção.

    "Eu sempre quis ser mãe e até pensei em engravidar naturalmente. Mas, com a morte do irmão dele, compreendi todo o sofrimento que essa doença causa."

    Pensaram, então, em adotar. Foi quando descobriram a possibilidade de fazer uma FIV (fertilização in vitro) na qual só embriões saudáveis são implantados.

    Isso é possível graças a um exame chamado DPGI (diagnóstico genético pré-implantacional), pelo qual é feita uma biópsia em uma das células de cada embrião para verificar se possui ou não a mutação.

    O problema é que o casal só encontrou registros do procedimento para essa doença em outros países, principalmente em Portugal, que concentra o maior número de casos. "Tentamos com vários médicos e nenhum aceitou. Eles diziam que nunca tinha sido feito no Brasil para essa síndrome, que não a conheciam, que era complicado. Um médico de Manaus chegou a falar para a gente desistir", conta Paula.

    Até que encontraram um especialista que aceitou pesquisar sobre a doença e fazer a tentativa. O DGPI, no entanto, teria que ser realizado nos Estados Unidos, pois exigia uma sonda específica, e o preço não ajudava, ainda mais em época de alta do dólar: US$ 4.000.

    "As células dos embriões seriam coletadas em São Paulo e enviadas para os EUA, e o resultado sairia em questão de horas. Mas era um gasto muitíssimo elevado para a gente. Apesar de todo mundo dizer que não tinha como fazer no Brasil, continuamos a pesquisar", diz Paula.

    A insistência deu frutos. Descobriram, em uma entrevista na televisão, uma pesquisadora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) que realiza o exame para várias doenças e disse que poderia fazer o teste para eles. Mas surpresa mesmo Paula ficou quando perguntou o preço. "Ela disse: "Nada. Você não paga seus impostos? A universidade é pública". Quase não acreditei", conta.

    Tratamento

    O tratamento, lembra Paula, não foi fácil. Para que pudesse produzir muitos óvulos --o que aumentaria a chance de gerar embriões saudáveis--, ela precisou receber uma alta dose de hormônios e teve a chamada síndrome do hiperestímulo ovariano, com efeitos colaterais que a deixaram de repouso absoluto por uma semana. Os embriões foram congelados.

    Enquanto isso, foi descoberto que seu endométrio (camada que reveste internamente o útero) era fino demais, e passaram-se dois meses até que atingisse, com a ajuda de remédios, a espessura mínima necessária.

    Após o descongelamento, quatro dos 11 embriões iniciais não resistiram e, segundo o resultado da biópsia, cinco tinham o gene da paramiloidose. Os dois que sobraram foram transferidos para o útero de Paula, que se emociona ao lembrar esse momento. "A transferência foi um momento muito, muito mágico. Depois disso a gente sempre acreditou que tinha dado certo."

    Ansiosos, os dois compraram um teste de farmácia, cujo resultado --positivo e fotografado para álbum de família-- foi confirmado pelo exame de sangue. Agora, três meses depois, sabem que é uma menina, Helena, que será criada em Curitiba, para onde o casal se mudará em busca de qualidade de vida.

    Eles acreditam que seja o primeiro caso de fertilização in vitro com a separação do gene da paramiloidose no país e dizem que o tratamento deu esperança a outros portadores da doença. "Toda a comunidade de paramiloidose no Brasil está se sentindo vitoriosa", diz Paula.

    Sobre os 2% de chance de que a criança nasça com o gene da paramiloidose, André diz que eles decidiram confiar no exame por considerarem uma margem pequena. "Decidimos não fazer o diagnóstico preciso depois do nascimento, mas não vamos fingir que nada aconteceu. Vamos manter a memória da doença e alertá-la."

    O ginecologista e especialista em reprodução humana Arnaldo Cambiaghi, responsável pelo tratamento, diz que a indicação da FIV com DGPI para pessoas com doenças genéticas ocorre quando o problema é mortal ou compromete gravemente a saúde, podendo causar grande sofrimento à criança e aos pais. "O importante é que as pessoas saibam que mesmo casais com doenças genéticas graves na família podem engravidar sem passar a herança para os filhos", afirma.

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