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    Atritos entre governo estadual e Fapesp são antigos, dizem cientistas

    GABRIEL ALVES
    DE SÃO PAULO

    04/02/2017 02h00

    Zanone Fraissat/Folhapress
    Fachada do prédio da Fapesp, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
    Fachada do prédio da Fapesp, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

    O episódio em que o governador disse que algumas pesquisas financiadas pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) seriam "inúteis", em 2016, e a recente retirada de R$ 120 milhões do orçamento da fundação (e posterior devolução) mostram que a relação entre o governo e a entidade com a agência de fomento não está muito bem –e não é de hoje.

    Segundo a Folha apurou, em 2015 o vice-governador Márcio França (PSB), que comanda a SDECTI (Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação), já havia manifestado, em reuniões com representantes de institutos de pesquisa, vinculados à pasta, o desejo de "enquadrar" a Fapesp às prioridades do governo estadual.

    Na avaliação de cientistas ouvidos pela reportagem, a intenção do governo estadual de realocar parte dos recursos da Fapesp para os institutos de pesquisa do Estado seria dar um empurrãozinho para o financiamento de estudos com um viés mais prático –com possibilidade de uso político.

    Receitas da Fapesp - Em R$ milhões

    Entre as pesquisas, a mais "útil" seria a vacina contra a dengue que está sendo desenvolvida pelo Instituto Butantan. O governo cogitou deslocar centenas de milhões de reais do orçamento da Fapesp para acelerar os estudos clínicos –o que não é possível de acordo com as regras da fundação.

    Por isso, Márcio França tem defendido uma reformatação dos recursos que vão para a Fapesp (a entidade recebe 1% das receitas tributárias estaduais). Uma parte iria para a pesquisa científica (que a Fapesp administraria) e outra para a pesquisa tecnológica, nos institutos de pesquisa (sobre os quais o governo tem mais influência).

    "O governador tem que entender que não pode mexer na Fapesp. Tenta-se imitá-la em outros Estados e ela é reconhecida no exterior como uma instituição séria e que funciona. É algo sagrado", diz a geneticista Mayana Zatz.

    Outros eminentes cientistas brasileiros, ouvidos pela Folha sob condição de anonimato, afirmam que Alckmin, apesar da formação como médico, demonstra pouco conhecimento sobre o funcionamento da pesquisa científica e erra ao cogitar possíveis cortes na área.

    "O governador substituiu a retirada de recursos pela perda de autonomia da Fapesp, obrigando-a a gastar R$ 120 milhões diretamente nos institutos de pesquisa do Estado. Nos últimos 50 anos sempre houve autonomia, nem nos piores governos ela foi perdida. Em ciência isso é importante e garante a isenção e a ausência de interferência política na decisão", afirma o físico Paulo Artaxo, especialista em mudanças climáticas.

    "Infelizmente pensam mais em fomentar campanhas eleitorais com os recursos do que as próprias pesquisas", critica o físico.

    Instituições beneficiadas - Em R$ milhões*

    Alberto Goldman, vice-presidente do PSDB e ex-governador de São Paulo, publicou na internet um vídeo a respeito. "É uma pena que se mexa em uma das instituições mais bem geridas e de maior utilidade. Isso se deu provavelmente por alguns interesses políticos que acabaram influenciando a decisão da Assembleia", afirmou.

    "Por interesses políticos da Assembleia, do Secretário de Desenvolvimento e do executivo, a Fapesp se transformou em uma matéria de negociação política", disse.

    OUTRO LADO

    A assessoria de Alckmin disse, em nota, que ele "jamais demonstrou 'desprezo pelas ciências básicas' e as ilações neste sentido não passam de declarações tomadas de segunda mão e fora de contexto. Ele entende que urge a necessidade de discutir a ciência aplicada, dentro e fora da academia, de forma intensa e livre de preconceitos, pois ela é um dos motores do desenvolvimento econômico e social de nossa época."

    Nº de projetos financiados atualmente -

    "A Constituição Estadual garante incentivo à pesquisa tecnológica, e esse objetivo será contemplado pela solução recém-negociada pela SDECTI e pela Fapesp."

    À Folha, Márcio França disse que a decisão de retirar 10% dos recursos da Fapesp para os institutos foi da Assembleia Estadual e que isso teria pouco uso eleitoral, já que haveria poucas pessoas diretamente beneficiadas.

    "Muitos pesquisadores dos institutos reclamam que não conseguem competir por causa da mentalidade acadêmica da Fapesp. Hoje eles conseguem só coisa de 5% dos recursos da agência."

    Para ele, com o novo acordo entre governo e Fapesp, isso deve melhorar: "Foi um empurrãozinho. Ia demorar mais 1, 2, 5 meses para a Fapesp ajudar os institutos... Agora vão ter que andar mais depressa."

    FALTA DE PESSOAL

    Os institutos de pesquisa do Estado de São Paulo sofrem com a falta de recursos financeiros e humanos. Sem a reposição de quadros de funcionários, alguns serviços importantes, como a produção de drogas, podem ser prejudicados ou interrompidos.

    "Há hoje no Ipen [Intutto de Pesquisas Energéticas e Nucleares] uma enorme escassez de recursos humanos especializados. O deficit vem de contínuas aposentadorias, mortes e transferência de funcionários nos últimos dez anos, praticamente sem reposição do quadro", diz o diretor de pesquisa, desenvolvimento e ensino, Marcelo Linardi.

    "Várias atividades de pesquisa do Ipen se encerraram ou estão funcionando precariamente, na iminência de extinção. As consequência serão duras para a sociedade, pois tratam-se de produção de radiofármacos, análises ambientais e serviços tecnológicos diversos", afirma.

    Um pesquisador de um outro instituto, sob anonimato, disse que antes trabalhavam 32 funcionários em seu núcleo de pesquisa, e nove eram pesquisadores. Hoje, restam seis funcionários ao todo (três pesquisadores).

    Ele relata ter trabalhado por anos dentro de um banheiro, onde improvisou um laboratório. Só mais tarde conseguiu financiamento para montar um espaço de trabalho adequado.

    O pesquisador também afirma que frequentemente são escolhidas pessoas sem produção intelectual e sem doutorado para dirigir as instituições. A indicação, que cabe às secretarias estaduais às quais os institutos se vinculam, seriam muitas vezes meramente políticas e deletérias para as entidades.

    Ele cita ainda uma desvantagem na hora de receber financiamento em comparação com os colegas de universidades, que saem na dianteira por ter um número maior de alunos –critério utilizado na avaliação do currículo do cientista.

    Para Linardi, os R$ 120 milhões do acordo entre o governo do Estado e a Fapesp "podem favorecer solicitações de modernização de infraestrutura, bem como capacitação laboratorial dos institutos com equipamentos e obras e ainda itens de fora do escopo de atuação da agência".

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