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    Hidrelétrica provocou adaptações evolutivas em lagartixas do cerrado

    REINALDO JOSÉ LOPES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    08/09/2017 02h01

    Divulgação
    Uma das lagartixas da espécie _Gymnodactylus amarali_, que teve sua população dividida
    Uma das lagartixas da espécie Gymnodactylus amarali, que teve sua população dividida em 'ilhas'

    A construção de uma usina hidrelétrica no norte de Goiás acabou transformando o cerrado da região num laboratório evolutivo a céu aberto. Nas várias ilhas que se formaram por causa do enchimento da barragem em 1998, lagartixas da região passaram por uma transformação-relâmpago de hábitos e aparência operada pela seleção natural, segundo mostra um novo estudo.

    Em menos de 15 anos, as populações de lagartixas da espécie Gymnodactylus amarali, isoladas pelas águas da usina da serra da Mesa, habituaram-se a capturar presas maiores e desenvolveram também cabeças mais avantajadas que as de suas primas que ficaram no "continente" (para ser mais exato, nas terras em volta da represa, é claro).

    O mais interessante é que esse processo aconteceu de forma similar e independente em cinco ilhas diferentes do reservatório, como se cada subgrupo dos bichos reagisse de forma similar às mudanças em seu ambiente.

    "Isso reforça a ideia de que há uma certa previsibilidade nesses processos, como já foi visto em outras situações semelhantes", disse à Folha o biólogo Reuber Albuquerque Brandão, da UnB (Universidade de Brasília), que é um dos autores da pesquisa. A análise, que tem como primeira autora Mariana Eloy de Amorim, também da UnB, acaba de ser publicada na revista especializada "PNAS", da Academia de Ciências dos EUA.

    LISTA NEGRA

    Brandão explica que conhece a área da usina, no município de Minaçu (GO), desde o começo dos anos 1990, e que começou a realizar trabalhos mais sistemáticos na região quando o reservatório começou a se encher.
    Conforme as águas do rio Tocantins iam subindo e engolindo 170 mil hectares de vales, crescia também a expectativa para entender o que aconteceria com as espécies que ficassem isoladas pela água.

    Ao longo do século passado, vários estudos importantes vinham mostrando que existe uma relação estreita entre o tamanho de ilhas - como as que iam ser criadas pelo reservatório –e a diversidade de seres vivos que elas abrigam. Em geral, quando o isolamento ocorre, há também um empobrecimento da diversidade original de seres vivos em cada nova ilha. Ao mesmo tempo, certas espécies podem sair ganhando.

    Em situações normais, a G. amarali, que se alimenta de cupins e inclusive costuma se abrigar dentro de cupinzeiros, precisa aguentar a concorrência de diversas espécies maiores de répteis (conhecidos popularmente como calangos na região). Com o surgimento das quase 300 ilhas do reservatório, muitas delas perderam os seus répteis de porte mais avantajado, enquanto as lagartixas continuaram comendo seus cupins até hoje.

    Mas não do mesmo jeito, porém: quando comparadas com as suas parentas de áreas vizinhas do reservatório, as lagartixas das ilhas tinham cabeças maiores –em média, 10,2 mm versus 9,8 mm, respectivamente.

    A questão, porém, não é só a média geral, mas o cenário em cada população: em todas as cinco ilhas, a cabeça dos bichos é proporcionalmente maior do que em cinco populações da espécie fora da represa, e não há indícios de que essa diferença existisse antes da construção da usina.

    Por que a seleção natural favoreceria a reprodução das lagartixas mais cabeçudas nas ilhas? Provavelmente para comer cupins maiores e mais nutritivos, disponíveis agora que os calangos não disputavam mais esse recurso com os bichos sobreviventes. Com efeito, análises do conteúdo estomacal das lagartixas revelaram que, nas ilhas, o cardápio apreciado era mais generoso - cupins com tamanho médio de 4,93 mm contra insetos de 4,23 mm fora da barragem.

    "A cabeça maior não é importante só porque permite que o animal tenha uma boca maior, mas também porque aumenta a força da mordida", explica Brandão. É que, entre as muitas espécies de cupins nativas do cerrado, há insetos particularmente duros de matar, cujos soldados possuem mandíbulas possantes e difíceis de enfrentar por parte de uma lagartixa de tamanho modesto –daí a utilidade de uma cabeça mais robusta.

    Como cada geração de lagartixas da espécie dura mais ou menos um ano, e o efeito foi observado 15 anos após o enchimento do reservatório, estamos falando de uma alteração evolutiva significativa no equivalente a "apenas" 375 anos em termos humanos (assumindo que uma geração da nossa espécie equivale a uns 25 anos).

    Brandão conta que o plano é continuar a estudar os efeitos evolutivos da hidrelétrica - se houver verba, é claro. "No cenário atual, isso seria quase um milagre", diz ele, lamentando os cortes profundos no financiamento à pesquisa no país.

    "É uma pena, porque esse trabalho mostra que temos cientistas criativos que conseguem fazer um trabalho de nível internacional em colaboração com cientistas de renome", argumenta, citando a parceria da equipe com Thomas Schoener, da Universidade da Califórnia em Davis, nome importante da área que também assina o trabalho.

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    DARWIN CURTIU ISSO

    Entenda a evolução "em tempo real" das lagartixas do cerrado

    1. HIDRELÉTRICA
    No final dos anos 1990, a construção da Usina Hidrelétrica de Serra da Mesa, na bacia do Alto Tocantins, inundou uma área de 170 mil hectares de cerrado, formando quase 300 ilhas

    2. ILHAS
    Os animais que viviam nessas ilhas ficaram isolados de seus parentes nas margens da represa, com uma área mais restrita para sobreviver. Isso produziu uma série de "experimentos": quais espécies iriam sobreviver no ambiente alterado? Quais poderiam se transformar para se adaptar?

    3. ADAPTAÇÃO
    Ao comparar os bichos das ilhas com os do "continente", os pesquisadores perceberam que vários répteis de maior parte desapareceram, enquanto as lagartixas da espécie Gymnodactylus amarali, que se alimentam de cupins e vivem dentro de cupinzeiros, prosperaram – e se modificaram

    4. CABEÇA
    Em apenas 15 anos, os bichos passaram a capturar presas maiores e desenvolveram cabeças de porte maior também (que facilitam a captura dessas presas). O mais interessante é que a mudança aconteceu de forma independente, e da mesma maneira, em cinco ilhas diferentes do reservatório – o que não aconteceu na terra firme fora dele. É um sinal forte de que a seleção natural está regendo essas transformações

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