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    Trinta anos depois do acidente em Goiânia, vítimas do césio ainda sofrem

    CARLA GUIMARÃES
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM GOIÂNIA
    RICARDO BONALUME NETO
    DE SÃO PAULO

    11/09/2017 02h02

    Reprodução/Twitter
    Lixo radioativo é transportado em Goiânia, após abertura de cápsula contendo césio-137

    Trinta anos após o acidente radiológico com césio-137 em Goiânia, vítimas diretas e indiretas ainda exibem as marcas da radiação e se queixam de discriminação.

    "Infelizmente ainda tem preconceito", afirma Odesson Alves Ferreira, 62, uma das vítimas. Ele teve contato direto com a fonte radioativa. Perdeu a palma da mão esquerda e parte do indicador direito, teve o indicador esquerdo atrofiado e comprometimento do polegar direito.

    O material foi mostrado a ele pelo irmão Devair Ferreira, dono do ferro-velho onde a peça com a cápsula de fonte radioativa foi manipulada. "Ele não sabia [do que se tratava], gostava do brilho, não tinha noção da gravidade", diz Odesson à Folha.

    A cápsula, ironicamente, fazia parte de um aparelho de radioterapia, usado para salvar vidas. Doses precisas de radioisótopos servem para destruir células cancerosas.

    O dispositivo foi encontrado e aberto em 13 de setembro de 1987. Só duas semanas depois é que se descobriu a natureza do material. O equipamento pertencia a uma instituição privada, o Instituto Goiano de Radioterapia; foi desativado em 1985, mas deixado no local.

    Na ocasião, pouco mais de 112 mil pessoas foram monitoradas no Estádio Olímpico. Destas, 129 apresentaram contaminação, ficaram isoladas de acordo com a gravidade e foram encaminhadas para tratamento.

    Quatro morreram por síndrome de radiação aguda –entre elas, Leide das Neves Ferreira, 6, sobrinha de Odesson e Devair que chegou a ingerir parte do material.

    Contaminação por radiação é algo raro, especialmente se não há uma usina nuclear por perto. Médicos tiveram dificuldade em identificar o problemas –muitos dos sintomas, como náusea e vômitos, são comuns em outras doenças.

    Após o acidente, Odesson teve que se aposentar "e deixar o que mais gostava, que era dirigir caminhões". Segundo ele, mais de 40 membros de sua família foram atingidos. O irmão Devair morreu em 1994, com cirrose hepática. O pai de Leide, Ivo Ferreira, morreu em 2003, por causa de enfisema pulmonar.

    Vizinha da família, Luiza Mota dos Santos, 58, era cunhada de Ivo. Foi por meio dele que ela teve contato com o césio. Sofreu lesões no pescoço, braço e na mão –uma espécie de queimadura, que deixou marcas claras na pele, semelhantes à do vitiligo.

    Um pouco do material que ela levou para casa caiu sobre a cama sem que ela visse. O marido, Kardec Sebastião dos Santos, 61, deitou em cima e teve uma lesão no braço direito, que demandou a realização de enxerto.

    O casal esteve entre as 14 vítimas levadas para tratamento no Rio de Janeiro, que passaram por descontaminação com medicamentos e limpeza das lesões. "Passavam até escova de lavar roupa em cima", conta Luiza.

    A casa em que moravam foi demolida e eles ficaram separados dos quatro filhos por mais de dois meses. O casal não tem nenhuma doença relacionada à radiação, nem oferece risco de contaminação. Mas ainda existe "muita gente mal informada", que, segundo Luíza, pensa que eles podem transmitir algo.

    ASSISTÊNCIA

    Atualmente, os dois são atendidos pelo Cara (Centro de Assistência aos Radioacidentados), ligado ao governo de Goiás, como outras vítimas.

    Luiza e Kardec se queixam de problemas de saúde precoces: ela diz ter dores nas juntas, e o marido já precisou fazer uma angioplastia.

    "Hoje, não existe risco de contaminação", afirma o diretor-geral do Cara, André Luiz de Souza. O órgão é responsável por monitorar a saúde das vítimas, que precisam fazer um check-up anual.

    Cerca de 1.100 pessoas são atendidas pelo centro –elas teriam recebido uma dose superior a um ano de radiação "de fundo", natural. A chance de desenvolverem câncer pode chegar em 1 para cada 100 casos de exposição.

    Uma lei estadual prevê o pagamento de pensão às vítimas da radiação, bem como assistência médica.

    Com o tempo, não só vítimas diretas, mas também vizinhos e trabalhadores que atuaram no acidente foram incluídos entre os afetados. Hoje, há 751 pensionistas e cerca de 20 novas pensões são concedidas todo ano por via judicial, diz o diretor do Cara. Cerca de cem pedidos ainda tramitam na Justiça.

    Vizinha ao ferro-velho de Goiânia, Lindalva Ribeiro, 57, teve contato indireto com a fonte contaminante e passou a pleitear pensão nos anos 1990. Desistiu depois de alguns anos, mas reabriu o processo em 2005 e teve sucesso. Ela tem depressão, e recebeu pela primeira vez em janeiro.

    A presidente da Associação das Vítimas do Césio 137, Suely Morais Silva, afirma que o valor da pensão está não é reajustado há dois anos. Cada vítima recebe R$ 788 por mês do governo de Goiás. O Estado diz que o valor deve será atualizado ainda em 2017.

    Uma ação civil pública requerendo a reparação dos danos ocasionados pelo acidente, ajuizada em 1995, segue em tramitação no STJ (Superior Tribunal de Justiça).

    "São 30 anos que esse acidente permanece como um fantasma para a população aqui de Goiânia", afirma o procurador da República Ailton Benedito de Souza.

    Segundo ele, das pendências, a mais importante é a realização de monitoramento epidemiológico na população da cidade. O governo tem até fevereiro para realizá-lo.

    LIMPEZA

    A limpeza da área afetada produziu cerca de 3.500 metros cúbicos de resíduos, ou seja, o equivalente à carga de cerca de 275 caminhões. Tudo isso obra de apenas 93 gramas de cloreto de césio. O resíduo foi levado para o município de Abadia de Goiás, a 23 km da capital. O espaço abriga uma unidade da Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear),que monitora a radiação.

    O lote onde foi inicialmente desmontado o aparelho com a cápsula do césio, no centro de Goiânia, e o local onde funcionou o ferro-velho de Devair Ferreira foram cobertos por um piso de concreto. Seguem sem construções e também são monitorados.
    A Agência Internacional de Energia Atômica (Iaea, na sigla em inglês), órgão das Nações Unidas, fez um relatório detalhado do caso e aponta que a comunicação deve ser prioridade nesses casos.

    "A disseminação de informações para a mídia, o público e, de fato, para a força de resposta é particularmente importante. Em um acidente, atender a necessidades de informação geralmente é um dreno sobre os recursos das pessoas que tentam lidar com as consequências do próprio acidente", diz o documento.

    A chance de um acidente semelhante hoje é bem menor. Mas, como diz a agência, todo cuidado é pouco.

    PERIGO

    A energia radiante, ou radiação, está em toda parte: a luz visível em suas várias cores, as ondas de rádio e televisão, o raio-X que permite enxergar o interior do corpo humano, o infravermelho que dá calor, o micro-ondas que é usado para cozinhar ou o ultravioleta que bronzeia a pele.

    Mas a radiação pode ser mortal. Vai depender do tipo de raios (com nomes como alfa, beta, gama, por exemplo), da sua dose, e o tempo de exposição.

    É por isso que operadores de aparelhos de raios X ficam atrás de barreiras protetoras de chumbo, e isso também explica por que não se deve realizar o procedimento em mulheres grávidas.

    O núcleo dos átomos de elementos químicos radiativos –como o urânio, o polônio e o radônio– passa por um processo denominado decaimento radioativo, no qual emitem energia de ala intensidade, muitas vezes se transformando em novos elementos químicos no processo. É essa energia, que pode vir na forma de partículas, que interagem com as células do organismo.

    As células deixam de se replicar e morrem, criando sintomas como náusea, inchaços, perda de cabelo. Ou então, danificadas, se reproduzem imperfeitamente.

    Minerais, reatores nucleares, bombas atômicas e equipamentos de quimioterapia emitem a radiação chamada "ionizante", capaz de enfraquecer e quebrar o material genético dos seres vivos, o DNA.

    As células expostas podem morrer, ou podem produzir mutações que levam a doenças como o câncer. Ironicamente, aparelhos de radioterapia usam a radiação para atacar células cancerosas; foi o caso do acidente com o césio-137 de Goiânia.

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