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    Alessandra Orofino

    Incompreendidos Carnavais

    06/03/2017 02h00

    Danilo Verpa/Folhapress
    Jovem se diverte no bloco Se te Pego não te Largo, na av. Faria Lima, zona oeste de São Paulo
    Jovem se diverte no bloco Se te Pego não te Largo, na av. Faria Lima, zona oeste de São Paulo

    E, de fato, Crivella não foi ao Carnaval. Não entregou a chave da cidade ao Rei Momo, não apareceu na Marquês de Sapucaí.

    Do outro lado da ponte aérea, Doria não só apareceu, como sambou, varreu o chão, e declarou, referindo-se à possibilidade de privatização do Anhembi: "ano que vem pode ser o último carnaval público de São Paulo".

    Nenhum dos dois entendeu nada de Carnaval –ou fingiram, ambos, não entender.

    Crivella deixou que sua secretária de Cultura, Nelcimar Nogueira –neta de Dona Zica e de Cartola– entregasse as chaves da cidade na cerimônia protocolar que marca o início das festas. Nelcimar é mulher, negra, do samba. Mas a ausência do prefeito é, ainda assim, um recado forte demais para todas as populações que fizeram e fazem o Carnaval carioca: em sua enorme maioria, os pretos, os suburbanos, os macumbeiros.

    São esses pretos, suburbanos e macumbeiros que, ao longo dos anos, transformaram o Carnaval numa potência cultural tão rica de significados e afetos que sua privatização, ou concessão, não pode de forma alguma ser associada à simples privatização de um espaço onde ocorrem os desfiles de escolas de samba.

    Não estou aqui julgando se o Anhembi deveria ou não ser privatizado –não tenho informações suficientes para sabê-lo. Mas tenho certeza que, de qualquer maneira, privatizar o Anhembi não seria privatizar o Carnaval. Porque o Carnaval –inclusive em seu eventual valor comercial– transcende seu aspecto físico.

    Saber e reafirmar esse valor intangível e coletivo da festa não é trivial, nem irrelevante. Olhemos, por exemplo, para os contratos de concessão que as maiores cidades carnavalescas do Brasil –Recife, Rio, Salvador– fazem com grandes empresas que pretendem vender seus produtos durante a festa.

    Baseando-nos apenas no número de folionas e foliões, na extensão territorial da farra, e outros dados materiais, estamos de fato vendendo o Carnaval –e vendendo mal. Porque o valor do Carnaval para uma grande corporação evidentemente não reside apenas em sua capacidade aglutinadora de consumidores sedentos, e sim em sua possibilidade de atribuição de significado: todo o significado que se constrói a partir da associação exclusiva a uma festa que é fruto da experiência e sabedoria acumuladas de gerações e gerações de marginalizados.

    Da mesma forma que ninguém compra um iPhone esperando pagar pelo plástico e o alumínio que o compõem, ninguém deveria esperar comprar o Carnaval pelo valor do estádio que abriga uma de suas encarnações. A diferença é que o real valor do iPhone é produzido por bem remunerados designers e engenheiros, e o valor do Carnaval foi criado coletiva e difusamente por gerações e gerações de Donas Zicas e Cartolas.

    Ignorar o Carnaval, ou achar que seria possível privatizar o Carnaval: em ambos os casos, é da capacidade de articulação e produção cultural de uma parcela enorme da população de nossas cidades que está se fazendo pouco caso. E é no Carnaval –na sua irreverência radical, na sua força ancestral, na sua capacidade de transbordar os confins das avenidas predestinadas e ocupar as cidades e pressionar suas veias e inverter suas lógicas particularizantes– que ainda podemos vislumbrar um pouquinho do melhor de nós mesmos, e do que, juntos, podemos ser.

    alessandra orofino

    É economista, cofundadora da Rede Meu Rio e diretora da organização Nossas. Curadora do blog #AgoraÉQueSãoElas. Escreve às segundas, a cada duas semanas

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