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    Alessandra Orofino

    Fake news é um conceito que mal se popularizou e já perde o sentido

    24/07/2017 02h00

    Reprodução
    Imagem de comercial de Donald Trump que questiona a mídia como "fake News"
    Imagem de comercial do presidente americano, Donald Trump, que questiona a mídia como "fake news"

    Kim Kataguiri, ex-colunista desta mesma Folha, está em campanha: publicou vídeo em que defende o fim do regime semiaberto usando dados comprovadamente falsos. Uma jornalista da Agência Pública resolveu checar as informações dadas por Kim –entre outras coisas, ele afirma que a reincidência atingiria mais de 70% dos presos no Brasil. A jornalista enviou então um e-mail ao MBL, o grupo de adolescentes e jovens raivosos do qual Kim faz parte, pedindo a fonte dos dados. Em resposta, recebeu uma imagem de um pênis ereto com as palavras "Check This!" (Cheque Isso!).

    O caso virou pauta do Greg News, o programa da HBO que tenho o prazer de dirigir, e da coluna de Ancelmo Gois. Kim publicou então novo vídeo, dando o link para um estudo do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que supostamente corroboraria seus dados. Só que o estudo diz exatamente o contrário do afirmado pelo MBL: sobre a tal taxa de reincidência de 70% entre os detentos, o CNJ afirma que não houve "pesquisa que pudesse avaliar a veracidade deste número". Enquanto isso, o Ministério Público do Rio divulgou a agenda de um evento sobre segurança pública que conta com Kim entre seus palestrantes.

    Nessa mesma semana, em São Paulo, a rádio CBN publicou uma denúncia: pessoas em situação de rua estariam sendo acordadas com jatos de água em meio ao frio intenso da cidade. Pouco depois, João Doria veio a público afirmar que se tratava de um "descuido": a empresa que faz a limpeza das calçadas do centro tinha acidentalmente molhado os cobertores de alguns dos moradores de rua que dormiam por ali.

    O tal descuido acontece no seio de uma administração que tem pecado pela falta de políticas públicas adequadas para a população de rua: o decreto de zeladoria publicado pelo prefeito originalmente previa que as ações de limpeza urbana pudessem ocorrer de madrugada, dando margem para que pessoas fossem acordadas de forma sistematicamente desumana e degradante. O decreto também abria brecha para que objetos pessoais, inclusive cobertores, fossem retirados pela Guarda Civil. Ambos os pontos só foram revistos depois de mobilização popular.

    Aí o Jornalivre, ligado ao MBL de Kim, publicou artigo no qual estampa o rosto da jornalista da CBN responsável pela denúncia, chamando-a de "militante de extrema esquerda". A razão: dois posts publicados por ela em 2013, um criticando a gestão Haddad pela repressão violenta aos protestos de junho, e outro comemorando o fato de a presidência ter se encontrado com manifestantes. O Jornalivre também chama a reportagem da CBN sobre os jatos de água de "fake news".

    Fake news é daqueles conceitos que mal se popularizaram e já estão sendo esvaziados de sentido. Em um de seus vídeos mais recentes, o MBL insinua que a Globo News é um veículo de fake news– usando, na edição, a voz de Donald Trump, que usa o termo para se referir à CNN. A própria Folha é constantemente acusada de fazer fake news –tanto por grupos de esquerda como de direita.

    E assim ficamos sem conseguir nomear um dos fenômenos políticos mais relevantes de nosso tempo. E ao sermos privados do conceito, perdemos a capacidade de repudiar o fenômeno. Se até a CBN e a Folha são fake, que mal faz chamar Kim Kataguiri para escrever num jornal ou falar de segurança pública em um evento do MP?

    alessandra orofino

    É economista, cofundadora da Rede Meu Rio e diretora da organização Nossas. Curadora do blog #AgoraÉQueSãoElas. Escreve às segundas, a cada duas semanas

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