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    Alessandra Orofino

    Em nome de Jesus, porra

    18/09/2017 02h00

    Reprodução
    O quadro 'Pedofilia', de Alessandra Cunha
    O quadro 'Pedofilia', de Alessandra Cunha

    Domingo, 10 de Setembro. O Santander Cultural de Porto Alegre decide encerrar a exposição Queermuseu, respondendo a um amplo boicote promovido por consumidores do banco que se diziam "ultrajados" com algumas das obras expostas.

    Quinta, 14 de Setembro. Um quadro em exposição no Museu de Arte Contemporânea de Campo Grande é apreendido pela polícia, depois de três deputados registrarem um boletim de ocorrência alegando que a obra, intitulada "Pedofilia" (e definida pela própria artista como uma denúncia) faria apologia ao crime. Os deputados afirmaram ainda que o quadro agride a "família, a moral e os bons costumes".

    Sexta, 15 de Setembro. A apresentação da peça "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu", que recria a história de Jesus como uma transexual, no SESC de Jundiaí, é cancelada por decisão judicial. O juiz que proferiu a decisão disse considerar o espetáculo de "mau gosto" e explicou que "não se pode admitir a exibição de uma peça com um baixíssimo nível intelectual que chega até mesmo a invadir a existência do senso comum e a macular o sentimento do cidadão comum."

    Os clientes do Santander, os deputados do Mato Grosso e o "cidadão comum" de Jundiaí têm direito à opinião, ao ultraje, ao boicote. Arte que cria discussão pública, reação forte, questionamento, é arte que move o mundo, é arte que cumpre ao menos uma de suas muitas possíveis missões. Com isso dito, o Santander –enquanto entidade privada que se beneficia de uma política pública de fomento à cultura– a polícia do Mato Grosso e a Justiça de São Paulo não podem dar ou deixar de dar acesso às obras tendo como base o ultraje do público. Aí, é censura sim. E a liberdade de expressão ou é valor absoluto, ou deixa de ser útil como pilar essencial da democracia.

    Sou daquelas que acreditam que, desde que não exista incitação clara à violência contra pessoas, temos que poder falar de tudo. Até das coisas que desprezo. Até das coisas que boicoto, contra as quais protesto, que rechaço. Até daquilo que nem considero arte. Porque definir o que é e o que não é arte é tarefa das mais difíceis. E muitos de nossos artistas consagrados foram considerados degenerados por seus contemporâneos.

    Entender que arte só é arte se ela não "invadir o espaço do senso comum" é pressupor que existe um árbitro do senso comum. Do belo. Do que é denúncia e do que é apologia. Do que é crítica e do que é desrespeito. E o árbitro –para além da decisão da Justiça, que não orientou nem a ação do Santander nem a da polícia de Campo Grande– muitas vezes acaba sendo unicamente quem tem poder. E se quem tem poder discordar de você?

    Terça, 12 de Setembro. A polícia do Rio começou a investigar vídeos que circulavam nas redes sociais. Em um deles, um suposto traficante obriga uma senhora a destruir objetos utilizados em rituais de candomblé e umbanda enquanto grita "em nome de Jesus, porra!" e "todo o mal tem que ser desfeito". Em outro, um pai de santo é obrigado a destruir as guias que representam os orixás.

    Se quem tem poder discorda de você, todo o mal tem que ser desfeito. Se quem tem poder discorda de você, quem tem poder decide se a arte é arte ou putaria. Se quem tem poder discorda de você, quem tem poder decide se a crença é crença ou bruxaria. Em nome da moral, dos bons costumes, do senso comum, e de Jesus, porra.

    alessandra orofino

    É economista, cofundadora da Rede Meu Rio e diretora da organização Nossas. Curadora do blog #AgoraÉQueSãoElas. Escreve às segundas, a cada duas semanas

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