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    Alessandra Orofino

    Geração Apocalipse

    02/10/2017 02h00

    Gemma Handy/AFP
    Casas em Antigua e Barbuda devastadas pelo furacão Irma
    Casas em Antigua e Barbuda devastadas pelo furacão Irma

    Cresci sabendo que eu viveria o fim do mundo.

    O nível do mar que não para de subir, a contaminação dos lençóis freáticos, as máscaras hospitalares cobrindo a boca dos passageiros nos aviões. Tudo indicava o apocalipse iminente.

    Recentemente, o apocalipse chegou. A última sucessão de furacões no Caribe e na América do Norte dizimou cidades inteiras. A pequena ilha de Barbuda teve que ser completamente evacuada, e ainda não se sabe se ela poderá ser povoada novamente. Porto Rico, que é oficialmente um território dos Estados Unidos, enfrenta uma crise humanitária de proporções gigantescas. Neste sábado (30), a prefeita de San Juan implorou por ajuda e acusou Donald Trump de ineficiência na resposta ao desastre: "Estou implorando para qualquer um que possa nos ouvir, para que nos salvem da morte".

    Apesar de sentir esse fim do mundo tão próximo, sempre achei que, se havia algum lugar que sobreviveria ao desastre, esse lugar seria o Brasil. Afinal, somos uma potência de recursos naturais –temos a maior floresta do planeta e quase 15% das reservas de água doce do mundo. Se alguma epidemia terrível se abatesse sobre a humanidade, sua cura certamente seria encontrada entre as muitas espécies ainda não estudadas da Amazônia.

    Se a agricultura fosse ameaçada por uma praga, seria o nosso celeiro vivo que alimentaria o mundo. Em nosso país continental, livre de terremotos, furacões e vulcões, haveria espaço para acolher todos os refugiados do apocalipse. O Brasil, país do futuro, era o país do pós-fim-do-mundo, a arca de Noé, a esperança dos homens.

    E mais. Para além de todos os nossos tesouros naturais, tínhamos outra grande vantagem, nesses tempos marcados por ódios, guerras civis e povos que se dilaceram mutuamente em territórios minúsculos: tínhamos o povo brasileiro. Um povo criativo, que certamente encontraria as saídas mais inusitadas –e festivas– para o apocalipse.

    Um povo marcado por uma história de escravidão e de exclusão, sim, mas também um povo que soube transformar em trunfo suas diferenças religiosas, que preservou tanto a novena de Dona Canô quanto o Olodum balançando o Pelô, e que fez do Carnaval a maior festa da Terra, e de um ritmo nascido nas favelas do Rio o seu verdadeiro hino nacional. Um povo dançante, com ginga eterna e um jeitinho que daria voltas até no mais aguerrido dos fins-de-mundo. Um povo-arte.

    E agora, agora que o apocalipse chegou e era a hora de mostrarmos para toda a humanidade que o século 21 será brasileiro ou não será, agora o país do futuro resolveu ficar obcecado com o passado. Nosso orçamento para a ciência foi dilacerado, cortado em mais de 40%, com a forte chance de novos cortes no ano que vem. A cura das epidemias permanecerá enterrada nas florestas brasileiras, sem cientistas que possam encontrá-la. A capacidade de criação, de irreverência e de questionamento está sendo dilapidada por uma onda de conservadorismo oportunista cujos porta-vozes midiáticos são, estranhamente, um ex-ator pornô, um ex-vocalista de uma banda obcecada por objetos fálicos e um prefeito de reality show.

    E o sincretismo religioso que permitiria que enfrentássemos os problemas reais sem criar problemas transcendentais vai encontrar um fim amargo no ensino confessional nas escolas públicas, agora devidamente avalizado pelo STF.O apocalipse chegou e, para a minha geração, o Brasil não será mais a arca de Noé.

    alessandra orofino

    É economista, cofundadora da Rede Meu Rio e diretora da organização Nossas. Curadora do blog #AgoraÉQueSãoElas. Escreve às segundas, a cada duas semanas

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