RIO DE JANEIRO - Animado com a exposição "O Rio de Mário, Rubem e João", em cartaz no Arte Sesc, peguei na estante um delicioso livro de Mário Lago, "Na Rolança do Tempo". A páginas tantas, encontrei uma cena de briga, a que o autor garante ter assistido "in loco", protagonizada por Madame Satã.
"O arranca-rabo foi em frente à Leiteria Bol. Oito meganhas cercavam um mulato, na tentativa de arrastá-lo para o tintureiro ou abrir-lhe as costas a golpes de chanfalho. Mas o mulato lhes escapava das mãos como uma enguia (...). Num abrir e fechar de olhos suas mãos se transformavam em pés e os pés, em volteios alucinantes, agrediam com a violência de um bate-estaca."
Fascinante personagem. Paulo Francis o comparou a Júlio César, Alexandre, o Grande, Heydrich e Goering. Depois de passar 27 anos no presídio da Ilha Grande, era exibido nos bares da zona sul carioca como encarnação viva da bandeira "Seja herói, seja marginal". Mas logo a "intelligentsia" festiva cansou-se dele. O único a lhe permanecer fiel, na camaradagem e nos copos, foi o cartunista Jaguar.
Morto em 1976, o cidadão João Francisco dos Santos, maior malandro de todos os tempos, resiste a desmistificações e desconstruções. Era "analfabeto de pai e mãe", como fazia questão de dizer. Sua lenda sobrevive tendo como principal fonte um único livro, "Memórias de Madame Satã", ditado ao escritor Sylvan Paezzo, de fértil imaginação.
Millôr Fernandes tentou uma rasteira no mito. Dizia ter inventado, para um musical, cena de balé em que um capoeirista enfrenta na Lapa uma patrulha inteira da Polícia Especial, mui temida durante o Estado Novo de Vargas. Madame, em entrevista ao "Pasquim", apressou-se a confirmar o fato.
Na dúvida, fico com a sacada do Millôr. E com o testemunho do Mário Lago.
Trabalha como jornalista desde 1988. Em redações de jornais e revistas cariocas, foi repórter, redator, editor, colunista. Escreve às terças.