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    Antonio Prata

    Menos piquete e mais Piketty

    04/12/2016 02h00

    Adams Carvalho/Folhapress

    Sempre que vejo notícias sobre torcedores espancados pela torcida rival, sou tomado pelo mesmo assombro. Times de futebol não são como grupos étnicos ou religiões, universos fechados onde as pessoas, ao conviverem somente com semelhantes, idiotizam-se a ponto de acreditar que quem mora do lado de lá da montanha, reza pra um Deus careca em vez de um Deus cabeludo, come pimentão cozido em vez de pimentão assado e amarra o cadarço do Kichute por baixo da sola em vez de enrolá-lo na canela merece morrer empalado.

    O palmeirense talvez seja casado com uma corintiana que é filha de um são-paulino que é irmão de um santista que trabalha com um vascaíno e no Natal estarão todos juntos comendo chocotone e assistindo ao especial Roberto Carlos. Quando o cara tá chutando a cabeça do outro cara caído por causa do time, não consegue entender que tá chutando a cabeça do primo, do pai, do tio, do sogro? Será que no Natal ele encontra o primo e confessa, chupando os dedos sujos de chocolate, enquanto o Rei canta "Detalhes", "esse mês matei um dos seus"?

    Sou chutado pelo mesmo assombro diante do progressivo distanciamento entre a esquerda e a direita no Brasil. Que um membro do MST não pretenda convidar o Revoltados Online para uma palestra motivacional num assentamento é mais do que compreensível, assim como um general da reserva não querer aceitar Nicolás Maduro entre seus parceiros de bocha parece bem razoável. Agora, que toda essa multidão que não apoia nem a Venezuela nem o DOI-Codi só consiga ver, entre os que divergem de si, fardas verdes e caudilhos Maduros é tão estúpido quanto o corintiano achar que o único lugar digno para um são-paulino é o túmulo.

    A caricaturização é ainda mais burra quando parte da esquerda. Toda vez que ela tacha qualquer pessoa que foi a favor do impeachment de "golpista" e "fascista" –como se as passeatas deste ano tivessem sido frequentadas apenas por Jucás e Bolsonaros– ela afasta de si os moderados de quem inexoravelmente precisará se quiser chegar ao poder e os empurra direto pra crista (e pra urna) da onda ultraconservadora.

    Passei a semana discutindo com amigos e conhecidos se deveríamos ir na manifestação deste domingo (4) contra as emendas no PL das dez medidas contra a corrupção. Em determinado momento, alguém sugeriu irmos com camisetas dizendo "Entendeu agora?", tripudiando de quem quis o impeachment. Ainda estou em dúvida se vou, tanto por não querer me colocar sob o guarda-chuva do Vem Pra Rua e do MBL quanto por discordar de algumas das medidas originais do PL, mas tripudiar dos manifestantes me parece tão suicida para a esquerda quanto a reeleição da Dilma. Se formos à Paulista, deveríamos ir com cartazes para atrair, não afastar aquelas pessoas, tipo "Esquerda contra a corrupção", "Boa gestão com distribuição de renda", "Contra a violência dos bandidos, contra a violência policial", distribuindo cópias de "Aquarius", "Cabra Marcado para Morrer", livros do Piketty, garrafinhas de água e balas de hortelã.

    É impossível conversar com quem defende a ditadura, a tortura, a homofobia. Mas ao lado desses, hoje, estarão seu primo, seu tio, seu sogro e uma multidão de pessoas decentes de cujos votos o Brasil precisa, mais do que nunca, para evitar um Donald Trump, uma Marine Le Pen ou um Bolsonaro em 2018. Ou dialogamos com os que têm formas diferentes de amarrar o Kichute ou abriremos uma avenida para a turma do empalamento.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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