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    Antonio Prata

    Segunda, dois de janeiro

    08/01/2017 02h00

    Adams Carvalho/Folhapress
    Ilustração Antonio Prata de 8.jan.2017

    Abro os olhos e vejo, no teste de Rorschach que as sombras pintam no teto do meu quarto, todas as tarefas de 2017. À esquerda, pontilhadas, cada uma das cinquenta e duas crônicas a serem escritas. Uma faixa perto da porta é a série na qual estou trabalhando. Paralela a ela há uma outra faixa, tremelicante: deve ser o livro que eu deveria ter entregue em 2016. (Talvez por isso essa faixa trema, como um alarme –ou talvez seja só o vento lá fora, chacoalhando um ramo do jasmim).

    Bem em cima da minha cabeça, uma bola sugere os 4 kg que, ao logo dos últimos meses, se desprenderam de outros trechos do cosmos e vieram se alojar na minha barriga: 4 kg que estou determinado a devolver ao universo, com corridas e abdominais, tão logo saia desta cama. As duas nesgas de luz que se cruzam sobre a janela só podem ser os desejos incompatíveis que insisto em nutrir: trabalhar mais e passar mais tempo com meus filhos.

    Se por alguma consequência inédita do efeito estufa a Terra passar a girar mais devagar, criando dias de 36 horas, conseguirei assistir "Procurando Nemo", escrever um conto e ler Dostoiévski numa mesma tarde. O relógio ao meu lado, contudo, ainda tem só 12 risquinhos. O ponteiro menor se aproxima lentamente do sétimo. Fecho os olhos e me escondo do ano novo embaixo do lençol. "Dormir, dormir, talvez sonhar." Lembro de ter lido essa frase em algum momento da adolescência. De quem é mesmo?

    Na adolescência as manhãs eram tão ou mais angustiantes, o frio de junho, o despertador me catapultando de sonhos eróticos para a tabela periódica, os adjuntos adnominais, as somas dos quadrados dos catetos. (Cateto deveria ser o nome de um avô bonzinho –eu delirava, ainda meio dormindo, durante as aulas de geometria–, Hipotenusa é uma grã-fina alta, magra e maldosa numa novela dos anos 80). Eu sofria tanto naquelas manhãs do colegial que, quando li a primeira frase de "A Metamorfose", do Kafka, pensei: bom, se eu despertasse de sonhos intranquilos transformado num inseto monstruoso, pelo menos não ia ter que ir pra escola.

    A escola era obrigatória, a gente fazia porque os pais mandavam, mas a vida adulta é a gente quem inventa. Era o que eu imaginava, aos 13 anos: quando eu for grande vou morar numa casa com um tobogã da janela do meu quarto direto pra uma piscina, vou ter uma bateria e uma mesa de sinuca na sala, minha alimentação vai ser à base de pudim.

    Já sou adulto há 22 anos e ainda aguardo ansiosamente por esse dia em que vou fazer só o que der na telha. Ou no tobogã. Toda manhã, no lusco-fusco entre o travesseiro e o holerite, o IPVA, o IPTU, penso se estou fazendo o que eu quero. Às vezes acho que trabalho demais e não aproveito. Noutras, tenho certeza de que gasto muito tempo com bobagens e deveria me concentrar mais no trabalho.

    Rolo de um lado pro outro. Escrever um conto? Ver "Procurando Nemo"? Entregar o piloto da série. Eu deveria comer mais pudim. Não, eu vou é cortar o pudim. Sai, 2017, me deixa dormir. "Dormir, dormir, talvez sonhar". Lembrei: é Hamlet, no monólogo do "Ser ou não ser". Por que não posso ver a sombra que treme e, em vez de pensar nas tarefas não concluídas, lembrar que do lado de lá da minha janela tem um pé de jasmim? Eis a questão.

    antonio prata

    É escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda' (editora 34).
    Escreve aos domingos.

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