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    Bernardo Carvalho

    A burrice vence pela lei do menor esforço e quer calar quem pensa

    01/10/2017 02h00

    Anderson Astor/Folhapress
    Protesto contra o fechamento da exposição Queermuseu, em Porto Alegre

    A força da burrice vem da sua incapacidade de compreender. A lei do menor esforço e a lei do mais forte se retroalimentam. Para que pensar, se podemos calar quem se esforça em fazê-lo? É aí que a imbecilidade se confunde com a má-fé que a instrumentaliza.

    Mesmo depois de tudo o que já se escreveu sobre o encerramento da exposição Queermuseu, no Santander Cultural de Porto Alegre, as imagens do vídeo gravado por autodenominados "militantes conservadores" durante visita à mostra (visita e vídeo que concorreram, ao que parece, para a espantosa decisão do banco) continuam ressoando na minha cabeça.

    A burrice exige que se explique tudo de novo, desde o zero. O bê-á-bá, sempre, em vão. É uma tática eficaz. A estupidez vence pela exaustão.

    Uma das conquistas da modernidade ocidental é a compreensão de que a realidade do objeto e sua representação são coisas diversas. É o que permite o exercício da razão, as ciências, o estudo das religiões e o entendimento de que nem tudo o que dizem os personagens numa obra corresponde às ideias do autor, assim como não basta desenhar um unicórnio para que ele exista.

    A representação é reflexiva. Ao revisitar a ação por diferentes pontos de vista, ela relativiza, permite a circulação de ideias. É um princípio civilizatório básico, que teria sido suficiente para aplacar a ira (ou a má-fé) de um dos militantes que perguntava, aos gritos, à saída da exposição em Porto Alegre, se aquilo não era pedofilia.

    Não, pedofilia é outra coisa. Uma obra que representa um ato de sodomia pode até ser considerada um ato, mas não sodomia. E é por isso que nós entendemos a arte, no mundo da razão, como uma ação reflexiva.

    Uma obra de arte, por mais que represente ou reproduza um ato sexual (ou mesmo pornográfico, mas não era o caso da exposição), não poderá ser considerada pornografia porque, sendo um ato reflexivo, é também um discurso de segundo grau. Não tem a mesma intenção, não está no mesmo contexto e –imagino que para a decepção do militante– em geral tampouco surte os mesmos efeitos da pornografia.

    Por ser ato reflexivo, ou a arte é questionável ou não é arte. Não existe arte indiscutível. Ela se dá, como qualquer outra representação, no âmbito das ideias, que por sua vez só existem por meio do debate ou, como os militantes do MBL tanto gostam de lembrar, da liberdade de expressão.

    O militante pode até achar que boa parte da arte contemporânea está reduzida a uma representação retórica, primária e ilustrativa, que barateia a inteligência. É uma crítica possível. Toda arte é passível de ser debatida. A única diferença em relação às religiões, que também são representações humanas e, portanto, passíveis de questionamento, é que para a arte essa é a sua condição de possibilidade.

    O fato de podermos questionar a arte pressupõe que não precisamos silenciá-la. Se a debatemos, é porque ela não impõe uma regra absoluta. A arte depende de interpretação tanto quanto as religiões (em meio à exposição, um dos militantes perguntava, entre um xingamento e outro, o que os católicos pensariam daquilo tudo). E, de mais a mais, à exposição, como ao teatro ou à igreja, vai quem quer.

    É o princípio do Estado laico. As religiões se contradizem. Para que possam conviver em paz, é preciso que sejam entendidas pelo poder público como manifestações do espírito humano (e não como verdades absolutas).

    O militante tem todo o direito de pôr em dúvida uma exposição. Mas não é por acreditar em demônio (ou ficar doente quando o vê) que o demônio de fato exista ou que não possa ser representado.

    Mais incrível (e muito mais preocupante) que a pusilanimidade da decisão do banco é a liminar de um juiz que, uma semana depois, suspendeu as apresentações de uma peça na qual Jesus é interpretado por uma atriz transexual. Se fôssemos seguir ao pé da letra a lógica da sentença, nem a Bíblia poderia ter sido escrita, porque contradiz valores, crenças e símbolos de outras religiões.

    Mas para que pensar e debater se podemos delegar esse esforço a guias e justiceiros que nos poupam da preocupação de discutir a impostura moral que representam?

    Por que não nos deixamos convencer por quem repete normas (sobre a cura de homossexuais e a salvação da pátria pelos militares, por exemplo) que, à força de ouvi-las, acabaremos acreditando, segundo eles, termos pensado nós mesmos?

    Assim como a ignorância, a burrice é contagiante porque é natural. Esperemos que os exemplos recentes não sejam o anúncio de um novo padrão de inteligência para o país.

    bernardo carvalho

    Romancista, autor de "Nove Noites" e "Reprodução", já foi jornalista da Folha. Escreve aos domingos, mensalmente.

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