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    Elio Gaspari

    O baú dos americanos

    15/07/2015 02h00

    O lote de 538 documentos liberados pelo governo americano durante a passagem da doutora Dilma por Washington é um tesouro para quem quiser reconstituir a teia das relações entre os dois países durante a ditadura. Eles estão no site do Arquivo Nacional.

    Seu maior valor está na divulgação de mais de uma centena de papéis da Defense Intelligence Agency, a DIA. Ao contrário do que diz a sabedoria convencional, a Central Intelligence Agency não é o único serviço de informações americano e a DIA é a principal operadora de informações militares. Por exemplo: o famoso general Vernon Walters, adido militar no Brasil em 1964, era da DIA e só foi para a CIA anos depois, como seu vice-diretor. Walters foi substituído no Brasil pelo coronel Arthur Moura, um descendente de açorianos, afável, até divertido, fluente em português. Nos anos de chumbo ele foi o mais poderoso funcionário americano no Brasil. Promovido a general a pedido do presidente Médici durante seu encontro com o colega Richard Nixon, passou para a reserva e posteriormente tornou-se diretor da empreiteira Mendes Júnior (ela, a da Lava Jato).

    A maioria dos telegramas da DIA foi redigida por Moura. Ele sabia muito –do general que entornava ao mulherengo e ao falastrão. Ajudava os amigos, levando remédios para o ministro do Exército. Moura foi um porta-voz convicto da máquina repressiva da ditadura. Em 1976, já na reserva, escreveu uma carta pessoal ao presidente Jimmy Carter descascando sua política de direitos humanos. Lembrou-lhe que quatro anos antes, ao passar pelo Brasil como governador da Georgia, elogiara a forma como a ditadura combatia o terrorismo. Lembrou ao presidente que ele visitara o país para defender os interesses da fabricante de aviões Lockheed, em cujo jatinho viajara. Alô, Lula. (O general fez chegar uma cópia da carta ao Planalto.)

    Do exame da primeira metade do lote de papéis liberados vê-se que o embaixador Charles Elbrick, sequestrado em 1969, manteve o senso de humor na noite de sua libertação, quando foi ouvido por agentes americanos. Elbrick achara que ia morrer. Uma vez solto, disse que se um dia tivesse que ir para a cadeia, ou se voltasse a ser sequestrado, gostaria de receber o tratamento que tivera. Os sequestradores compraram-lhe cigarrilhas quando seu estoque de charutos acabou. Ao levarem comida, desculparam-se pela qualidade: "Nós não sabemos fazer de tudo".

    Para quem persegue charadas, o papelório joga luz numa. Em novembro de 1969, quando Carlos Marighella foi morto em São Paulo indo ao encontro de dois freis, o consulado americano lembrou a Washington que sua conexão com os dominicanos do convento de Perdizes já havia sido exposta num telegrama de dezembro em 1968. De fato, há décadas sabia-se que houve um contato do consulado com "frei (dezoito batidas censuradas)". Ilustrando a incompetência da polícia, ele contara que Marighella estivera no convento, localizado nas cercanias do DOPS. Essas dezoito batidas parecem ter sido desvendadas. Outro telegrama, transmitido três dias depois da morte de Marighella e liberado agora, identifica o religioso da conversa de 1968 como "frei Edson Maria Braga" (dezessete batidas). À época havia um frei Edson em Perdizes, mas seu nome completo era Edson Braga de Souza. Era o prior do convento.

    elio gaspari

    Nascido na Itália, veio ainda criança para o Brasil, onde fez sua carreira jornalística. Recebeu o prêmio de melhor ensaio da ABL em 2003 por 'As Ilusões Armadas'. Escreve às quartas-feiras e domingos.

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