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    Francisco Daudt

    As razões do coração

    31/08/2016 02h00

    E vá você discutir com um louco: ele usará qualquer truque, desprezará o racional para continuar 'tendo razão'

    "O coração tem razões que a própria razão desconhece". A primeira vez que ouvi essa frase foi num samba de Marino Pinto e Zé da Zilda ("Aos pés da santa cruz"), mas ela havia sido dita 300 anos antes pelo filósofo e matemático francês Blaise Pascal (1623-1662), antevendo as dimensões do inconsciente muito antes de Freud nascer.

    Duas coisas me encantam na frase de Pascal: o apreço pela razão, bem típica de seu tempo (Iluminismo e Idade Moderna), com a vontade de que a razão viesse a dar conta de tudo. A outra: o fato de eu trabalhar com a invenção de Freud e me esforçar para, com a psicanálise, entender as razões do coração.

    Não sei qual das duas me encanta mais. Claro, eu adoro descobrir por que razão esquisita uma pessoa morre de medo de avião, mas anda tranquilamente de carro (o lugar mais arriscado em que entramos). Ou que diabos levam àquela outra se apaixonar por alguém que é claramente uma roubada.

    Descobrir a trama que conecta a história de uma pessoa a suas decisões aparentemente irracionais é como ser um detetive neo-iluminista em busca das razões cifradas do desejo inconsciente, as razões do coração. E até há as sociológico/psicanalíticas: por que gays buscam o amor de um hétero, quando seria razoável que o buscassem entre seus pares? Porque foram rejeitados por seus pais héteros, e agora querem corrigir a história (a encrenca é que a história tende a se repetir, tão parecido com o pai é o objeto de seu desejo). Outra: por que às vezes, no amor, a distância aproxima e a proximidade afasta? Porque a distância favorece a idealização, e a proximidade traz o real. É difícil, preferimos o ideal.

    Mas certamente o apreço pela razão tem sido um farol-guia em minha vida. Tenho por ela carinho, respeito e admiração.

    Como a humanidade fez para sobreviver, vivo a procurar o sentido das coisas, dos fenômenos, da ação humana. A ela sou grato pela minha saúde mental; em sua defesa eu saio amiúde, mormente nesses tempos em que ela vive sendo escorraçada das conversas, quando não vilipendiada nos pronunciamentos políticos. Basta ver o quanto nos enlouquece a distorção do sentido, o como a razão é torturada pelas intenções espúrias da novilíngua de quem está querendo nos enrolar.

    Tudo o que se publica (este artigo, por exemplo) visa influenciar o senso comum. O termo "formadores de opinião" é pretensioso, mas vem daí. Em alguns casos, como na crescente aversão ao cigarro, o senso comum é afinado com a razão. Em muitos outros, como na equação simplória do "pobre é coitado e bom; rico é cruel e mau", e o coitadismo que daí resulta, é mais afinado com o "ter razão", por irracional que seja.

    A propósito, mesmo irracional, há no processo uma homenagem à razão: todos querem "ter razão", a despeito de seus desprezos pela lógica. Como Polonius disse ao rei, "Senhor, existe método nessa loucura": ela serve a um objetivo de dominação. E vá você discutir com um louco: ele usará qualquer truque, desprezará o racional para continuar "tendo razão".

    Afinal, como afirmou o escritor inglês Gilbert Chesterton (1874-1936), "o louco é aquele que perdeu tudo, exceto a razão". São as razões do coração.

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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