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    Francisco Daudt

    Importamos horror ancestral para a instância mental crítica do superego

    21/12/2016 02h00

    Monica Alves/Divulgação
    criança com uma barata em seu aniversário de cinco anos
    Criança com uma barata em seu aniversário de cinco anos

    Ela pegou a barata morta pela antena e mostrou para a sobrinha adolescente: "Ela está morta, não pode te fazer nenhum mal, não tenha medo!". A menina apavorada recuava lentamente em direção à janela. Só quando percebeu que a jovem preferiria se jogar a ter contato com a barata é que a tia desistiu.

    Esse episódio sempre me intrigou: de onde viria aquele horror tão poderoso, e por que ele poderia se aplicar a uma barata morta? A psicanálise podia até me explicar o mecanismo das fobias, as ameaças do mundo transferidas a situações inofensivas do cotidiano, o poder de fogo do superego transportado ao cenário externo, mas certamente não me elucidava quanto ao tamanho do horror que elas continham.

    Quando descobri a psicologia evolucionista, fiquei impressionado com o quanto ela preenchia os vazios de conhecimento sobre o funcionamento da mente deixados pela psicanálise. O medo de escuro, por exemplo: se pensarmos em nossos ancestrais na savana africana entendemos porque ele é universal, pois quem não teve lá esse medo foi devorado por predadores e não deixou descendentes. Somos herdeiros, portanto, de quem teve medo do escuro. Certo, isso pode nos fazer compreensivos com os filhos que querem uma luzinha acesa no quarto, ou batem à nossa porta de noite.

    E não é o único medo herdado: nascemos com um programa de autopreservação que teme répteis, altura, confinamento, grandes insetos voadores, felinos de porte, abandono/desamparo. Ele se preserva ao longo da vida, e gente que nunca viu uma cobra é capaz de pular ao se deparar com uma ao vivo. Medos mais racionais, como de entrar num automóvel (o lugar mais perigoso que frequentamos sem medo nenhum) não são absorvidos: você não conhece ninguém que tenha morrido picado de cobra; já de acidente de carro...

    Foi quando me dei conta de que as fobias mais comuns são exatamente de insetos (baratas), escuro, confinamento (elevador, avião, multidão), répteis inofensivos (lagartixas), os tais medos que herdamos no software genético. Isso fecharia a lacuna da psicanálise: nós importamos o horror ancestral para dentro dessa instância mental crítica chamada superego.

    Mas isso dava numa hipótese ainda mais fascinante: o próprio superego como um software inato, originalmente destinado a ser um mecanismo de sobrevivência, e mais tarde alimentado pela cultura com novos significados assustadores, crenças que nos aterrorizam pelo poder que a elas atribuímos.

    Isso é algo muito grande: nunca ouvi falar de uma hipótese unindo conceitos da psicanálise aos da psicologia evolucionista, e espero que algum leitor venha a me refutar, pois sou um seguidor da epistemologia de Karl Popper.

    Restava um enigma: os adolescentes japoneses que se suicidam por vergonha de haverem falhado em exames escolares. De onde lhes viria esse horror pior do que a morte? E o que dizer do medo do ridículo, que atormenta tanta gente?

    Sim! Do horror do abandono/desamparo! Do pesadelo cultural que é o degredo, desterro, exílio, opróbrio, infâmia, a solitária, a solidão.

    Foi assim que um psicanalista se curvou, humilde, mais uma vez, frente à natureza humana.


    www.franciscodaudt.com.br

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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