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    Francisco Daudt

    Raiva é uma revolta contra o que nos parece injusto (mesmo que não seja)

    15/02/2017 02h00

    Fotolia

    Como psicanalista, sou um advogado de defesa do cliente que me contrata. Ele chega pagando pena, prisioneiro por décadas de uma culpa que não está clara –sua neurose–, e pior, achando-se mais culpado ainda por tê-la. Quero ver os autos desse processo que o condenou, mas eles não estão on-line, infelizmente. A coisa é tão injusta que se faz necessário um trabalho detetivesco de arqueólogo para decifrá-lo. Sim, porque ele está codificado em sintomas e sonhos, ele está inconsciente.

    A beleza da coisa reside em que, à medida que vamos jogando luz na história, ela se revela injusta com o neurótico: foi resultado de incompetências –nunca encontrei história de má intenção– de sua criação carregadas pela vida afora, o famoso complexo de Édipo. Exposta a injustiça, entra então a força da justiça: a indignação e o inconformismo, a vontade de corrigir o erro.

    Indignação com injustiça é um software inato que trazemos, com um resultado primeiro: raiva. Qualquer raiva é revolta contra o que nos parece injusto (mesmo que não seja). Por isso digo que a raiva é a mãe da justiça. É ela que motiva a busca de se corrigir o erro, ainda que muitas vezes tome caminhos que só fazem agravá-lo.

    Um jovem cliente me perguntou: "Qual é sua motivação na vida? A minha é a vingança". Respondi que a minha era amar e ser amado. Disse ele: "É, essa também é boa... mas vingança é melhor!"

    Ele era prisioneiro de um canal incompetente da justiça, deixara de viver sua vida para se tornar um vingador. Ele se ressentia da incompetência de seus pais, e era rebelde na vida como forma de vingança. Ou seja, seus pais continuavam mandando nele. O máximo desse tiro no pé é o suicídio de vingança, para deixar os pais culpados. É o único suicídio que me revolta, os outros costumam ser eutanásias.

    Mas, veja só, o fato de se perceber prisioneiro do ressentimento, e a injustiça contida nisso, fez com que ele começasse a mudar o rumo de sua vida, a tomá-la para si em vez de dedicá-la a "homenagear" os pais.

    Outro canal incompetente da raiva é a inveja: "Ele é mais bonito, rico e inteligente que eu, isso não é justo". O curioso é que a inveja não almeja a igualdade, e sim a inversão da desigualdade: "Quero me dar bem, e que ele se ferre". Isso ajuda a entender muitas ideologias políticas...

    O ciúme, por sua vez, ora é injusto, ora é justo: quando nasce um irmãozinho e toda a atenção que o mais velho recebia lhe é retirada, o ciúme que ele tem é mais do que justo, precisa ser considerado e respeitado.

    A justiça está ligada ao nosso programa de altruísmo recíproco: mesmo na amizade, se estamos dando muito mais que recebendo, um incômodo/raiva começa a surgir.
    Repare em você como a avaliação de justiça/injustiça funciona quase que o tempo todo, aplicada a inúmeras situações.

    A psicanálise conta com essa premissa: o complexo de Édipo é injusto, vamos corrigi-lo. A esperança de cura, em psicanálise, reside na força da justiça. A esperança de cura das doenças institucionais do Brasil reside na força da justiça.

    Me encanta ver isso acontecendo.

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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