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    Francisco Daudt

    Não basta ao narcísico se admirar, ele também busca ser admirado

    30/08/2017 02h00

    Fotolia
    Mulher sendo fotografada
    Mulher sendo fotografada

    "Ah, cansei de falar de mim! Fala um pouco agora você, sobre mim..."

    Esses narcisistas sempre me intrigaram, e isso me levou a ir entendendo uma coisa ou duas sobre eles. A primeira e mais óbvia é que seu maior interesse é a própria imagem. Na Grécia clássica seria aquela refletida na superfície do lago; atualmente se diria que eles são obcecados em sair bem na foto. É verdade que "nada do que é humano nos é estranho", mas isso é prioridade total em suas vidas.

    Tomemos o exemplo do noivo crônico: o cara está casado com a própria mãe, mas sabe que não fica bem na foto ser solteirão aos 40 anos. Então vai arrastando o noivado, e quando a noiva rompe com ele, fica bajulando-a para que ela não o odeie: precisa sair bem na foto.

    Um cliente me conta que a mulher lhe deu um presente de 50 anos que nada tinha a ver com ele.

    "Ela não tem a menor consideração por mim". É verdade, mas o curioso é que não há maldade nisso: simplesmente ela não o considera porque ele não lhe passa pela cabeça. Ele não mora lá. O presente era caro e ela ia sair bem na foto: era o bastante.

    A outra ficou impressionada com a biblioteca dele. Levou tempo para entender que ele só comprava, mas não lia, livros que o fariam... sair bem na foto, como intelectual.

    Sim, porque não é a própria pessoa se admirar, apenas. É também buscar ser admirada. É como uma obsessão em seduzir, o que me fez pensar no componente histérico dos narcisistas: eles querem ser desejados, mas é frequente que quando esse desejo lhes for mostrado, pedindo retorno, eles se escandalizem dizendo que "você não entendeu bem, eu só queria ser agradável". Isso tem ficado claro nos casos de supostos héteros seduzindo gays: eles jogam uma tonelada de charme, e ficam travados (ou indignados) quando finalmente recebem a cantada que buscaram.

    Como se forma um narcisista? Em alguns casos é fácil: a pessoa sempre foi muito bonita, desde criança está acostumada a ser gostada e desejada por sua aparência; intui que seu maior capital erótico/afetivo mora nessa beleza, e portanto passa a ter por ela um zelo excessivo. Daí podem derivar dismorfia (gente magra se achando obesa) e hipocondria (que Freud classificou como neurose narcísica): demasiada atenção em si mesmo.

    Outro caso clássico é o dos filhos únicos (se são lindos, então...): é muita atenção sobre eles. Mas vi um caso em que a filha mais nova, desprezada pela mãe que só tinha olhos para o primogênito, tomou o irmão como modelo, imitando-o no narcisismo, como a buscar o amor idealizado da mãe que nunca havia sido seu: passou a vida desprezando quem a amava (tornando-se com isso idêntica à mãe), pois só queria o amor de quem a desprezava.

    E narcisismo tem jeito? Bem, os casos que me chegam têm em comum uma preciosidade: a pessoa se incomodou de ser assim. Se além disso ela está entre os poucos inteligentes da espécie humana (o que é uma soma de raridades, convenhamos), ela pode usar sua inteligência –e sua própria vaidade– para aprender a sair da arapuca afetiva e neurótica em que se meteu, ou foi metida.

    Mas dá um trabalho...

    www.franciscodaudt.com.br

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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